PARANÓIA OU MISTIFICAÇÃO? Este artigo foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de dezembro de 19 17, com o título "A Propósito da Exposição Malfatti", provocando a polêmica que afastaria os modernistas de Monteiro Lobato.
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em con seqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados par a a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem t ilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn n a Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêm eras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cu ltura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência : são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenh os que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos m anicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estr anhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e abso rvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo m istificação pura. Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais q ue não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo tr ansformam-se em impressões cerebrais, nós "sentimos"; para que sintamos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra complet a alteração, ou que o nosso cérebro esteja em "pane" por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá "sentir" senão um gato, e é falsa a "interpretação" que o bichano fizer um "totó", um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes. Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti , onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, f ora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tant as e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um semi-número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para co nstruir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssim o, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não am de ouros tantos ramo s da arte caricatural. É extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetra do. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primi tiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fis ionomia de que sai de uma destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denuncia as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de q uem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de racionar, e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, apr oveitam a vaza para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de pa lavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções iníveis ao vulgo, justi am-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cava lgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta. N o fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos. Arte moderna, eis o estudo, a suprema justificação. Na poesia também surgem
, às vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira sempre a mesma: arte mo derna. Como se não fossem moderníssimo esse Rodin que acaba de falecer deixando após s i uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso "virtuose" do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas, e dos corp os femininos em botão. Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de i ncomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da dry point que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-prima de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade. Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua escola o trabalho de um mestre a mericano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma no ta explicativa o diz) uma figura em movimento. Está ali entre os trabalhos da Sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra-prima, julgue o públi co do resto tomando-me a mim como ponto de referência. Tenhamos coragem de não ser p edante: aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O Sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pés, fe chou os olhos, e fê-lo ar na tela às pontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de u m lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu tempo, visto como o resultado foi absolutamente o mesmo. Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e pam-no traseiro voltado numa tela. Com os movimentos da cauda do animal a broxa ia borrando a tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclama pelos mistifica dores como verdadeira obra-prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado. A pintura da Sra. Malf atti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas c omo agregou a sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o Sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insignes cavalga duras, a coorte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a Steves, de Velásques a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice-versa. Porque é de todo impossível dar o nome da obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro, de Chabas, e o carvão cubista do Sr. Bolynson. Não fosse a profun da simpatia que nos inspira o formoso talento da Sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis. Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irrit ar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lis onja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe t raduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quan do elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos tal entos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio i ncondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talv ez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos "bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é toma r a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valio sa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadore s, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim , porque também eles pensam deste modo... por trás.