Schópke, Regina Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômacle / Regina Schópke. – Rio de Janeiro : Contraponto ; São Paulo: Edusp, 2004. Inclui bibliografia. ISBN 85-85910-56-9 (Contraponto) ISBN 85-314-0829-6 (Edusp) 1. Deleuze, Gilles, 1925- I 995. 2. Diferença (Filosofia). 3. Filosofia sa. I. Titulo. Direitos reservados à
Contraponto Editora Ltda. Caixa Postal 56066 – 22292-970 Rio de janeiro – Rj – Brasil Tel./fax (21) 2544-0206 \vww. contra pon toedi to ra. com. br e-mail:
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Introdução ... 11
I. O pensamento como ultraamento da representação clássica A razão clássica como imagem dogmática do pensamento ... 25 Representação e recognição: a prisão do pensamento ... 30
II. Uma genealogia da diferença A "diferença" entre os gregos ... 48 1. Heráclito e Parmênides: o devir e a imutabilidade do ser. .. 48 2. Platão e Aristóteles: alteridade e diferença específica ... 52 3. Os sofistas e o mundo dos simulacros ........66 4. Os estóicos e a lógica dos incorporais ......74 A "diferença" e o problema do ser no pensamento medievaL .. 80 A "diferença" na filosofia moderna e contemporânea ... 90 1. Espinosa: univocidade e imanência ... 90 2. Bergson e o ultraamento da razão clássica ... 99 a) Intuição x razão ... 99 b) Intuição: ato simples ou método rigoroso? .. 1 06 c) Duração: uma ou várias? .. 111 3. Nietzsche e o eterno retorno ... 115
III. A diferença pura: "conceito" e "ontologia" Conceitos e planos de imanência: a criação filosófica ... 131 A Idéia de diferença e a essência da repetição ... 143
IV. Arte e pensamento nômades: a afirmação da diferença
o Estado e a máquina de guerra ... 165 O "nomadismo" e a afirmação da diferença ... 171 Conclusão ... 189 Notas ... 195 Referências bibliográficas ... 219
Introdução 11 A história da filosofia deve não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, o que ele não disse e, no entanto, estava presente no que ele disse. GILLES DELEUZE
13 Sob o ponto de vista deleuziano, fazer "história da filosofia" é uma tarefa bastante árdua. Poderíamos perguntar o porquê disso, já que geralmente se entende por "fazer" história da filosofia um empreendimento quase mecânico, por meio do qual se deve repetir, sem grandes considerações, o que disse um filósofo. Mas, se entendermos que essa tarefa inclui dizer o que está "subentendido" em sua obra, ou seja, dizer o que está ali implicitamente, esse intento torna-se mais e mais problemático. Talvez seja neste sentido que devêssemos compreender que toda interpretação é já uma criação pessoal e que se Deleuze criou "monstros" quando falou de outros filósofos (como ele mesmo disse, em uma carta ao "amigo" Michel Cressole), é porque era impossível não se misturar, não se colocar, não fa zer parte de um universo que ele estava prestes a desvelar. Cada interpretação é, nesse sentido, um ponto de vista, embora seja preciso que a interpretação não desfigure o filósofo, mas o faça falar mais do que ele próprio disse. Não se trata de colocar palavras em sua boca, mas de fazer com que cada palavra se desdobre e diga em que sentido ou sentidos devemos tomá-la. É assim (como Deleuze) que entendemos fazer história da filosofia. Não inventamos nada e, no entanto, procuramos ressaltar o que estava subentendido. Não criamos, por nós mesmos, nenhuma idéia de Deleuze, mas acabamos nos envolvendo na própria criação deleuziana. E para quê? Para podermos falar de um "mundo" que não é o nosso – ainda que tenhamos a sensação de estar no mesmo baro que ele, de navegar nas mesmas correntezas que ele navegou. 14
POR UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA
Pois bem, falar de Deleuze é mesmo muito difícil, mas não porque ele seja obscuro ou porque ficou preso demais a questões conceituais (afinal, como ele próprio diz, é tarefa da filosofia lidar com os conceitos; e é ela que os inventa). Falar dele é difícil porque o seu pensamento empreende uma verdadeira "conquista do infinito". E não se trata aqui de palavras vazias. A distinção entre o que chamamos de "filósofos nômades" e "fi lósofos sedentários" depende diretamente da compreensão deste tema;' Em outras palavras, de um lado temos os filósofos da transcendência, metafísicos por excelência, pensadores de um "espaço estriado", em uma palavra, sedentários. Do outro, os nômades, os verdadeiros habitantes das estepes, homens que transitam em um "espaço liso", pensadores da imanência que fazem do pensamento uma aventura de alto risco. Entre os dois, a diferença é de natureza. Mas, mesmo que isso ainda não esteja tão claro (pois precisamos primeiramente elucidar tais conceitos), é preciso não se deixar enganar com a falsa idéia de que o pensador nômade é um apologista do caos ou que sua filosofia é desordenada e pouco rigorosa. Sem dúvida, precisamos ser cuidadosos na compreensão dos conceitos deleuzianos. Afinal, tal como ele próprio afirmou, os conceitos precisam ser inventados e isso não se faz senão no embate, no confronto ou mesmo no agenciamento com outros conceitos. Como veremos, um conceito é sempre um composto que remete a outros conceitos e a outros planos de imanência. É assim que um filósofo pode reativar um conceito de outro filósofo e imprimir nele sua própria marca, impondo novas conexões e produzindo novas interpretações. Nesse ponto, Deleuze é mesmo um nômade. E se usamos um conceito que ele próprio atribui a Nietzsche, é porque vemos em sua obra o mesmo desejo de fazer do pensamento um fluxo, um devir que se assemelhe à vida (pois é dela que o pensamento deve retirar as suas leis e não da imobilidade – que só existe como fruto de uma abstração equivocada). Deleuze é, 15 mais do que qualquer outra coisa, um pensador da diferença, um pensador das singularidades, e será preciso mergulhar em suas idéias e nas composições que ele fez com outros pensadores para compreendermos bem por que
só uma ruptura com a representação clássica pode liberar o pensamento de sua função recognitiva e fazer dele uma potência criadora. A questão da diferença é, evidentemente, o ponto central da filosofia deleuziana, embora não possamos deixar de ver associada a ela uma clara reflexão sobre o ser (o que nos levaria a supor uma "ontologia" em Deleuze, mesmo sabendo do caráter problemático desta afirmação). De fato, como veremos, o aprofundamento do conceito de diferença pura nos leva inevitavelmente ao conceito de ser, mesmo que de uma forma totalmente nova. Vejamos a questão mais de perto: para Deleuze, o ser é unívoco, mas isso não quer dizer que ele seja uno (ou seja, que exista um único e mesmo ser para todas as coisas, tal como em Espinosa). Para ele, não existe um ser, mas múltiplos seres. Assim, unívoco quer dizer, especificamente, uma "só voz" para toda uma multiplicidade de seres. Em outras palavras, todos se "dizem" da mesma maneira, isto é, em sua própria diferença. É claro que não é nada simples compreender essa questão (que ainda se complica quando sabemos que a diferença só se afirma integralmente na repetição). Também não é fácil entender como Deleuze "nega" a representação, as identidades plenas, a transcendência, e como erige a diferença (o díspar) como elemento primordial do pensamento. Mas esta é exatamente a nossa tarefa: mostrar como "funcionam" os conceitos deleuzianos e por 'que podemos considerar Deleuze um pensador nômade por excelência.
Como dissemos anteriormente, nossa pesquisa é uma "interpretação", mas é também uma manifestação de apreço por um pensador que tentou libertar a diferença das malhas rígidas de uma representação que confunde "peLsar" com "reconhecer". É verdade que ele não foi o primeiro a empreender 16
essa verdadeira conquista do infinito. Seríamos levianos se não falássemos de Nietzsche (e, na verdade, Nietzsche está presente em todo o trabalho, ou melhor, está subentendido). Mas Deleuze não poupou esforços e atirou ainda mais longe o dardo de Nietzsche, transformando-se numa espécie de segundo "sim", de dupla afirmação do devir e do eterno retorno. Como o próprio Deleuze havia dito a respeito da filosofia nietzschiana, era preciso um duplo "sim" para que tudo retomasse, para que a existência fosse afirmada e desejada de modo incondicional. Para nós, Deleuze é esse duplo, esse segundo "sim" à existência e ao seu caráter altamente problemático. Pois bem, para que as questões apresentadas acima sejam perfeitamente compreendidas, é preciso deixar claro o que significa "nomadismo" do pensamento e como ele representa a própria conquista da diferença. Para isso, nos preocuparemos primeiro com a compreensão da própria noção de diferença – que será pensada em si mesma e não mais como diferença numérica ou específica. Em outras palavras, será pensada em sua forma pura e insubmissa aos liames mediadores da representação – que tendem a submeter a diversidade dos seres à identidade plena de um conceito geral e abstrato. Enfim, para darmos conta deste tema tão complexo, dividimos a pesquisa em quatro capítulos. No capítulo I, definiremos a representação e apresentaremos de que modo ela se faz presente no tipo de pensamento que chamamos de "sedentário". Procuraremos mostrar também o que Deleuze chama de "imagem ortodoxa do pensamento" e como tal imagem impossibilita a compreensão da diferença pura. E, finalmente, trataremos ainda de distinguir o que Deleuze designa por singular e particular, de modo que a questão da repetição (tratada no capítulo III) possa ser compreendida em profundidade. No capítulo II, faremos uma espécie de "genealogia da diferença". Nele, trabalharemos com alguns filósofos que, direta ou 17
indiretamente, abordaram a questão da diferença. Mas o que supomos ser de grande importância nesse capítulo é que, dentre as muitas formas de abordar o conceito de diferença, nós selecionamos aquelas que de alguma maneira integram, como "linhas diagramáticas", o próprio conceito deleuziano de diferença pura (o que só ficará verdadeiramente mais claro também no capítulo III, em que mostraremos como Deleuze pensa a filosofia e como ele define os próprios conceitos como "virtualidades" compostas). No capítulo III, trabalharemos com a noção de "plano de imanência" – sem a qual não poderíamos entender como Deleuze pensou os seus agenciamentos com outros filósofos. É aqui também que elucidaremos o conceito de
diferença pura – conceito estritamente deleuziano que abre definitivamente as portas para o infinito, para o nômade, para o ilimitado. Um infinito que faz implodir a representação e que impede os conceitos de se tornarem ferramentas impermeáveis, estabelecidas de uma vez por todas. Na verdade, em Deleuze, o conceito torna-se uma instância problemática cuja definição não se enquadra mais nos moldes representativos (definir é precisar, é limitar...), mas deve ser entendida, em si mesma, como uma tarefa problemática e problematizante – algo que está sempre apontando para novos caminhos e possibilidades. E, tal como dissemos anteriormente, não podemos tratar da diferença sem falar do ser, daí por que esse capítulo tenciona mostrar também o que Deleuze chama de ser unívoco e como a univocidade não exclui a multiplicidade. Por fim, no capítulo IV trataremos de precisar melhor o que chamamos de pensador nômade e por que não podemos dissociá-lo dessa conquista da diferença e do simulacro. Nesse capítulo, é a arte que dá as mãos à filosofia; a arte que tem (na visão de Deleuze) tanto a ensinar ao filósofo. Aliás, o maior ensina mento da arte parece ser mesmo este: o de que cada obra de arte 18
é autônoma, única e insubstituível, assim como cada ser, cada pensador. Como afirma Deleuze, não há um
pensador que não seja, ele mesmo, um criador de conceitos, um criador de "novos mundos", um criador de uma "nova existência". Afinal, de que valeria o pensamento se ele não arrastasse consigo a vida, se não a transformasse, se não a recriasse continuamente?
I. O pensamento como ultraamento da representação clássica 19 Enquanto a diferença está submetida às exigências da representação, ela não é pensada em si mesma ... GILLES DELEUZE
21 Segundo Deleuze, escrever é sempre um ato inacabado, algo em vias de se fazer, um processo, um puro devir.1 Isso vale, sobretudo, para a literatura, onde o escritor metamorfoseia-se de muitas maneiras, num constante e imperceptível movimento de alma. Mas vale também, num outro sentido, para a filosofia. Afinal, quem escreve termina por gerar um fluxo que não se completa naquele que lê, mas, ao contrário disso, está sempre à espera de uma nova conexão, de um novo olhar que lhe permita continuar em movimento. É assim que um escrito, seja ele de ficção ou de filosofia, é algo que não se fecha em si mesmo, mas precisa sempre de uma força externa para manter-se "vivo". Também o pensamento – na obra deleuziana – deve ser entendido como um processo, como algo que não pode ser paralisado, um movimento que tende ao infinito, que anseia por ele. É assim que pensar se transforma numa aventura arriscada. Afinal, alçando os seus maiores vôos, o pensamento experimenta o fascinante perigo da quebra dos limites. É quando ele se permite pensar a diferença em si mesma – o grande inimigo da razão clássica. É claro que sabemos que muitos filósofos não compartilham essa idéia. Mas é no próprio Deleuze que
buscamos a sua razão de ser, pois ele – mais do que qualquer outro – procurou diferenciar o pensamento do puro ato recognitivo.2 É sobre esta questão, especificamente, que versa o capítulo I: o que é a representação e por que ela nos impede de pensar a diferença (princípio constitutivo da Natureza)?3 O que distingue, afinal, 22
o pensamento da razão? E por que Deleuze considera que a diferença, em si mesma, só pode ser objeto do pensamento?4
Sem dúvida, não entenderemos bem as idéias de Deleuze se não compreendermos o lugar que o conceito de diferença ocupa em sua obra. Não só o conceito de diferença, mas também aquele que, não sendo dado de imediato, lhe é totalmente correlato: o conceito de repetição. Afinal, é na repetição que a' diferença se faz autenticamente presente, embora isso nos soe enigmático, uma vez que as idéias de repetição e de mesmo sempre nos pareceram indissociáveis. De qualquer forma, só falaremos disso mais adiante, quando tratarmos das noções de generalidade e de singularidade. Por ora, queremos assinalar que o grande objetivo de Deleuze é "libertar" a diferença das antigas malhas da representação – que tende a transformá-la em um puro conceito do entendimento, uma forma vazia, sem qualquer vínculo com as suas múltiplas manifestações. Na verdade, a diferença – submetida às regras da identidade e da semelhança – torna-se ível de ser "estabelecida" porque obedece aos critérios rígidos do raciocínio lógico e representativo. Mas é aqui precisamente que, segundo Deleuze, a diferença perde realmente a sua natureza anárquica e subversiva. É por isso que a questão que nos parece fundamental em sua filosofia é a seguinte: a representação clássica não pode dar conta da diferença sem com isso modificar a sua natureza rebelde. Isso quer dizer que a diferença só pode ser objeto de uma representação, seja ela "orgânica ou orgiástica", 5 se for mutilada em sua "essência" mais profunda. A diferença, de fato, torna-se pensável, mas somente e tão-somente enquanto se apresenta submissa aos liames mediadores da representação, ou seja, à quádrupla sujeição da representação: a identidade no conceito, a oposição no predicado, a analogia no juízo e a semelhança na percepção.6
23 Fora desse quadro, a diferença perde-se no infinito. "Torna-se grande ou pequena demais para ser pensada e mesmo para existir." O que significa dizer que a diferença, na sua realidade mais profunda e desagregadora, é reduzida ao próprio não-ser, ao próprio caos – lugar onde todas as determinações se desvanecem. Segundo Deleuze, uma vez submetida às exigências da representação, a diferença torna-se prisioneira do reino da generalidade – que desconhece tudo aquilo que não participa das suas duas grandes ordens: a ordem da semelhança entre os sujeitos e a da equivalência entre os termos. 7 Isso quer dizer, exatamente, que como ruptura, como descontinuidade, a diferença não pode ser representada sem se tornar uma inimiga do pensamento, isto é, o elemento perturbador de uma ordem "previamente" estabelecida. É claro que existe uma forma de "razão-moral" que determina que só deve ser levado em consideração aquilo que está compreendido em um modelo específico, prefigurado. Essa é uma maneira de exclusão premeditada daquilo que a razão não pode apreender – dada a sua estrutura absolutamente lógica. 8 De um modo geral, a própria filosofia se estabeleceu sobre essa imagem dogmática. Afinal, somente uma "imagem moral do pensamento" justifica a difícil relação que os filósofos sempre tiveram com as idéias de mudança e de devir – idéias essas que colocam em jogo a própria noção de identidade plena.9
Na verdade, foi a serviço dos ideais morais que a razão se constituiu como uma instância seletiva e como suprema juíza de valores, desqualificando e destituindo de qualquer relevância para o pensamento tudo aquilo que não se enquadrava em um modelo específico. Segundo Deleuze, quando Platão condenava os simulacros, ele estava primeiramente condenando todo e qualquer estado de diferença livre, de distribuição nômade – tudo aquilo que recusava, por sua existência, a noção de um modelo prévio. O simulacro contesta tanto a existência do original quanto da cópia. Ele é a instância que compreende, 24
em si, uma diferença. É isso que o torna tão indesejável para o espírito. 10 É assim que, como austera juíza de valores, a razão condena tudo aquilo que lhe pareça um tanto ou quanto descentrado, desregrado. É por este motivo que a diferença, em sua forma pura, escapa completamente a sua compreensão e, sobretudo, se constitui em uma ameaça ao perfeito equilíbrio da razão. Submeter sumariamente a diferença aos princípios da identidade e da semelhança (na representação) é selecionar aquilo que nela deverá ou não ser reconhecido pela razão. Daí a necessidade de tornar o entendimento um verdadeiro legislador e o pensamento, um simples processo de recognição.11
Dito de outra forma: o pensamento é apenas "re-conhecimento" quando está submetido e regulado pelos princípios da representação. Sua atividade mais fecunda está paralisada, sua natureza está reprimida: o seu poder de criar, de pensar e de produzir sua própria diferença. Nesse ponto, Deleuze e Nietzsche estão em perfeita sintonia: o pensamento não é, estritamente falando, algo "natural", algo que se exerce espontaneamente; ele é uma "segunda natureza", um puro refinamento da razão. O seu poder de liberar ou mesmo de produzir a diferença está diretamente ligado ao rompimento com a representação clássica. Além disso, só parece ser legítimo falar em "poder de criação", em "atividade plástica do pensamento" quando este assume toda a sua potência: Pensar, como atividade, é sempre um segundo poder do pensamento, não o exercício natural de uma faculdade, mas um extraordinário acontecimento no próprio pensamento, para o próprio pensamento.12 Assumir toda a potência do pensamento significa, primeiramente, romper com um determinado estado de coisas. Significa poder pensar a diferença em seu estado puro. Significa, enfim, atingir a máxima força criadora – capaz de produzir algo 25
de original num mundo que persegue, como ideal, a igualdade e a semelhança (vide o senso comum). Que fique claro, no entanto, que a originalidade de um pensamento não está ligada ao fato de ele produzir neologismos ou conceitos extravagantes. A originalidade está associada a um ponto de vista novo, a um novo olhar para todas as coisas, a uma percepção extremamente aguçada. A originalidade de um pensador, para nós, deve ser medida pela qualidade e intensidade de seus afetosl3 e pela força de conexão entre as suas idéias. Mas, com certeza, ainda não fomos suficientemente claros na exposição do que Deleuze chama de "representação clássica" e de "atividade recognitiva". Daí por que fica ainda bastante complicado estabelecer uma distinção mais precisa entre razão e pensamento (levando-se em conta, é claro, que o conceito de representação está diretamente ligado a uma forma específica de funcionamento da razão). emos, então, à exposição do que Deleuze chama de "imagem moral do pensamento" ou, mais precisamente, de "razão clássica".
A razão clássica como imagem dogmática do pensamento Na verdade, uma imagem moral ou ortodoxa do pensamento parece ter sido erigida desde o alvorecer da filosofia ou, mais precisamente, a partir de Sócrates e de Platão. Segundo Deleuze, podemos reconhecer essa imagem dogmática partindo de três teses básicas:14 1. O pensamento se exerce "naturalmente", como unidade de todas as outras faculdades, consideradas seus modos. Tem uma boa natureza e uma boa vontade. Goza de uma natureza reta que tende para a verdade, considerada um universal abstrato. A verdade absoluta é buscada e amada pelo pensador, sujeito de "boa vontade" e de princípios indiscutíveis. É pelo "bem" que o filósofo dedica sua existência ao supremo ato do pensamento. 26
2.Existiriam forças avessas ou estranhas ao pensamento, que acabariam por impedir o seu perfeito e natural funcionamento. Essas forças, advindas do corpo, das paixões ou de qualquer interesse sensível, desviam o pensamento de seu objeto específico, fazendo-o tomar o falso pelo verdadeiro. O erro é, dessa forma, visto como o efeito dessas forças que atuam sobre o pensamento, restando ao filósofo o exercício de uma prática as cética de "insensibilização", de mortificação do corpo. 3.Necessitamos de um método que nos leve a pensar verdadeiramente, que nos dirija retamente ao conhecimento pleno da verdade15. Só um método rigoroso pode conjurar definitivamente o "erro". Somente por meio desse método experimentaremos a certeza de que, independentemente de momento e lugar, somos capazes de penetrar no domínio do que "vale em todos os tempos e em todos os lugares". Esses são os chamados "pressupostos básicos" ou "postulados implícitos", que conferem à filosofia ares de inocência. Supõe-se, afinal, que todo filósofo deve saber exatamente o que significa "pensar". 16 Na verdade, essa imagem do pensamento – representada aqui por essas três teses – reflete claramente o ideal moral da razão
e da própria filosofia como "ciência" do pensamento. 17 Isso porque somente uma filosofia impregnada de valores morais ite a possibilidade de uma retidão do pensamento ou a idéia de um "Bem" como seu fundamento. Somente uma orientação dessa natureza pode promover a busca ascética da verdade, em sua forma abstrata e absoluta: "Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar". 18 27 A questão dos pressupostos implícitos envolve, segundo Deleuze, o problema do começo em filosofia. 19 Por onde deve um filósofo começar? Deveria ter ele idéias preconcebidas, verdades inquestionáveis – qualquer tipo de orientação que o direcionasse? Mas como diferenciar a filosofia do senso comum, se ela parte de verdades preestabelecidas? Esta é a razão pela qual os filósofos preocupam-se em afirmar a sua total isenção e imparcialidade (no que tange à verdade), quando, no fundo, eles já partem de pressupostos implícitos (aquilo que "todo mundo sabe"). É assim que Descartes pensa ter chegado a idéias totalmente novas quando, de antemão, já delineava o seu próprio percurso, partindo dessas três teses básicas. Aliás, não é nada difícil reconhecer, em Descartes, esses postulados: seja na idéia do filósofo como um sujeito de boa vontade, que persegue a verdade (entendida como um universal abstrato), seja na defesa que ele faz da necessidade de um método preciso que impeça o pensador de desviar-se de seu caminho reto (o que pode acontecer, "dada a natureza perversa e apaixonada do homem", diriam alguns). Mas, como afirma o próprio Deleuze, "( ... ) eis que surgem gritos isolados e apaixonados. Como não seriam isolados, visto negarem o que 'todo mundo sabe (...)'?". 20 Como não seriam apaixonados, se negam aquilo que "jamais poderia ser negado"? Quem são esses senhores malevolentes, sujeitos de má vontade que não reconhecem que o pensamento está em afinidade com a verdade? Nietzsche é, certamente, um desses sujeitos. E ele próprio já havia apontado esse ideal moral de uma maneira surpreendente e reveladora. Segundo Nietzsche, a verdade parece ser ( ... ) uma criatura bonachona e amiga das comodidades, que dá sem cessar a todos os poderes estabelecidos a segurança de que jamais causará a alguém o menor embaraço pois, afinal de contas, ela é apenas ciência pura.21 28
Não foi sem um grande pesar que Nietzsche acusou a filosofia de estabelecer-se também como um saber puro, como um saber teórico dissociado de uma prática efetiva. E Deleuze, de modo algum, distancia-se dele quando defende a idéia de que o discurso é já uma prática. 22 Diríamos mesmo que é sobre o próprio discurso da filosofia que a crítica nietzschiana incide: um discurso avesso e mesmo inimigo dos grandes movimentos da existência. Não se trata da defesa de uma postura política ou de engajamentos sociais por parte do filósofo. Esse tipo de compreensão banaliza tanto a filosofia de Nietzsche quanto a de Deleuze. Trata-se da defesa de um discurso que fortaleça a existência e de uma vida que fortaleça o discurso. Afinal, em ambos, o pensamento deve efetuar-se como uma verdadeira "máquina de guerra", sendo capaz de produzir uma existência singular, um "modo de existir" ético e estético23 para lá das práticas sociais vigentes. Em outras palavras, são modos de vida inspirando maneiras de pensar e modos de pensar inspirando maneiras de viver. 24 Sem essa "unidade", o filósofo produz uma espécie de "vida dupla": um saber bem articulado e organizado, mas uma vida fraca e despotencializada. A pergunta é: como poderia o pensamento se exercer, em toda a sua potência, sem arrastar consigo a própria vida? O pensamento, como atividade criadora, reinventa a existência e não se submete aos valores preestabelecidos. Ele os recria para si, produzindo uma nova apreciação das coisas e do mundo. Sem dúvida, a filosofia construiu um vasto e poderoso império, mas o fez assentado em bases morais, usurpadoras da vida. É assim que ela nega e deprecia o corpo e tudo aquilo que envolve a sua existência – o movimento, o tempo etc. O pensamento torna-se servo dessa moral, torna-se enfadonho, puramente formal e conceitual. Em vez de ameaçador, inventivo e criador, torna-se melancolicamente um "re-conhecedor" dos valores vigentes, um espectador distanciado da vida – sem forças para produzir novos modos de existência. Definitivamen29
te, a filosofia ainda se encontra a serviço da moral. E, como diz Deleuze, "o verdadeiro concebido como universal abstrato, o pensamento entendido como ciência pura nunca fizeram mal a ninguém25. Inegavelmente, essa lamentável orientação26 da filosofia levou a uma confusão dos ideais do pensamento com aqueles defendidos pelo Estado, pela religião e pela moral vigente. "Sem derrubar os sentimentos estabelecidos", a filosofia fez do pensamento um puro ato recognitivo – uma faculdade "reconhecedora" do mundo e dos valores. Impedindo o exercício de sua natureza criativa e absolutamente insubordinada, a filosofia fez do pensamento um "bom moço", sempre complacente com as tolices do mundo. Mas, como diz Deleuze, eis que surgem os gritos apaixonados ... Ah! Esses sujeitos de má vontade ... Por que querem mudar aquilo que todos aceitam de bom grado e sem qualqúer reflexão? Quem lhes dá o direito de levantarem a voz para dizer que não sabem aquilo que "todo mundo sabe"? O pensamento como afirmação da diferença, como afirmação de nossa própria diferença. É isso que defendem os "filósofos da diferença", os "pensadores nômades" – aqueles que não se enquadram em modelos prévios 27. Fazer do pensamento um "modo de existência", uma "máquina de guerra nômade" cujo maior desafio é permanecer livre dos modelos da representação, livre da Moral que tornou o pensamento um beato companheiro dos poderes vigentes. Este é o maior objetivo de Deleuze (e também era o de Nietzsche): lutar contra toda forma de moral que invadiu o pensamento; lutar sobretudo contra as idéias de transcendência e de verdade absoluta. Mas resta-nos ainda explicar melhor o que é a representação e quais as suas exigências para tornar "pensável" um objeto. Falta-nos também elucidar a questão da recognição e mostrar por que a sua função é apaziguar o espírito – o que em hipótese alguma combina com o caráter "vulcânico" do pensamento (que nem de longe é complacente ou servil). 30
Representação e recognição: a prisão do pensamento Confundir o pensamento com o puro ato de recognição é algo deplorável- que devemos à própria filosofia e à imagem ortodoxa do pensamento que ela erigiu.28 Para Deleuze, a filosofia universalizou a doxa – quando o seu intuito era eliminá-la.29 O que Deleuze quer dizer com isso? Estaria a filosofia no mesmo nível do senso comum ou, para ele, ela teria se transformado numa espécie de senso comum "esclarecido"? Nem uma coisa nem outra. Afinal, é bem verdade que, desde o início, a filosofia empreendeu uma luta bastante violenta contra o que ela própria chamou de "opinião" (a filosofia não deve ser opinativa, já pensava PIa tão ). Mas, se refletirmos bem a respeito da doxa, perceberemos um outro elemento além do fato de ela ter sido considerada a antítese do conhecimento verdadeiro das coisas. E é esse elemento que o pensamento acabou por tomar para si, enquanto confrontava-se com ela: a idéia, terrível para o pensamento, do "todo mundo sabe': Assim como "o bom senso é a coisa melhor partilhada no mundo", ninguém coloca em dúvida coisas consideradas elementares. Daí por que certos pressupostos implícitos continuam presentes em muitas filosofias – até mesmo entre aquelas que tiveram a pretensão de empreender uma verdadeira crítica da razão e do juízo. Pois bem, desse modo podemos dizer que se por um lado a filosofia produziu idéias muito pouco íveis para a maioria, por outro, ela partiu de alguns postulados comuns a essa mesma maioria. Além disso, é exatamente a fórmula do "todo mundo sabe" que torna o pensamento apenas um puro ato recognitivo. Mas, para Deleuze, a filosofia não é isso. O pensador não é um homem melhor habilitado do que os outros: ele é aquele que não reconhece os pressupostos implícitos (que a filosofia erigiu, ao confraternizar-se com os poderes estabelecidos).30 Ele é o homem de má vontade, como dissemos anteriormente. 31
Afinal, "a forma da recognição nunca santificou outra coisa que não o reconhecível e o reconhecido, a forma nunca inspirou outra coisa que não fossem conformidades".3l Como poderia o pensamento (como recognição) "reconhecer" a diferença,32 se é da natureza desta furtar-se a todo tipo de modelo? Como poderia reconhecê-la se ela perturba a ordem das coisas, se ela rompe com a generalidade (que tem na semelhança e na equivalência as suas máximas)?
É bem verdade, como afirma Deleuze, que os atos de recognição existem e ocupam grande parte da nossa vida cotidiana.33 Toda vez que olhamos uma mesa, sabemos o que ela é. Não precisamos pensar toda vez que repetimos "bom-dia" ou "boanoite". Mas querer que o pensamento não e de um mero "reconhecimento" é dar a ele um papel muito medíocre:
( ... ) o que é preciso criticar nesta imagem do pensamento é ter fundado seu suposto direito na extrapolação de certos fatos, e fatos particularmente insignificantes, a banalidade cotidiana em pessoa, a Recognição, como se o pensamento não devesse procurar seus modelos em aventuras mais estranhas ou mais comprometedoras.34 O que é um pensamento que não faz mal a ninguém? Esta parece ser a pergunta mais significativa, já que, como recognição, o pensamento não ameaça nem a "pequena e segura vida" daquele que "pensa" nem as normas estabelecidas. Deleuze é, mais uma vez, enfático: O signo da recognição celebra esponsais monstruosos em que o pensamento "reencontra" o Estado, reencontra a "Igreja", reencontra todos os valores do tempo que ela, sutilmente, fez com que assem sob a forma pura de um eterno objeto qualquer, eternamente abençoado.35 Há um ponto bastante significativo que Deleuze observa em Nietzsche. Diz respeito à própria recognição. Nietzsche parece muito preocupado em frisar a diferença que há entre a "recog32
nição" e a produção de novos valores. Para ele, em momento algum o pensamento tem uma função recognitiva. Não se trata de dizer que, em alguma ocasião, os velhos ideais foram novos e vigorosos. Os "novos valores" permanecem sempre novos. Não é uma questão de cronologia, senão ele estaria defendendo que devemos sempre acompanhar o nosso tempo, que devemos "reconhecer" como nossos os valores vigentes. O "novo", tanto em Nietzsche quanto em Deleuze, é aquilo que ativa o pensamento, que o força a "pensar", que o impele a agir (sendo que a ação do pensamento é a sua própria criação). Em Proust e os signos, Deleuze fala da atividade do pensamento como algo extraordinário e não como resultado de um "interesse natural":36 "Nós só procuramos a verdade quando estam os determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca".37 Isso quer dizer que "pensar" não é uma tendência natural, mas é efeito de uma força externa que nos violenta, retirando a razão de sua função recognitiva: "A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários".38 Aprender, segundo Deleuze, diz respeito essencialmente aos signos,39 só que os signos são sempre múltiplos e divergentes: "O signo pressupõe em si a heterogeneidade como relação': Daí por que ousamos dizer que é o caráter diferencial dos signos (a própria diferença que eles interiorizam) que descentra a razão e a força a um novo exercício – o exercício do pensamento. É por esse motivo, revela-nos Deleuze, que Nietzsche riria só de pensar que poderiam chamar de "vontade de potência" as lutas por prestígio e poder desencadeadas pelo senso comum. "Estranha luta de consciências para a conquista do troféu constituído pela Cogitatio natura universalis",40 ressalta Deleuze. O que querem esses que lutam pelos valores vigentes? E o que querem os filósofos quando fazem do pensamento apenas uma forma de "legitimar" tais valores? 33
Quem pensa que Nietzsche, ao criticar a idéia de uma verdade absoluta, tinha como objetivo ridicularizar a figura sisuda do pensador e tornar o pensamento algo ível a todos engana-se profundamente. O pensador tornou-se, com Nietzsche, ainda mais severo (ainda que menos "pesado" e menos "solene"). Mais severo porque o pensamento não pode deixar-se levar pelas tolices do cotidiano. Não pode ceder às pressões religiosas, morais ou sociais. De certa forma, o pensamento continua a ser, para Nietzsche e Deleuze, uma instância seletiva. Só que não se trata de uma seleção à maneira de Platão. Eles aboliram, definitivamente, a transcendência – o que confere à "seleção dos pretendentes" um outro estatuto. O próprio Deleuze trata desse ponto em Crítica e clínica: A seleção não recai sobre a pretensão, mas sobre a potência. A potência é modesta, contrariamente à pretensão. Na verdade, só escapam ao platonismo as filosofias da imanência pura: dos estóicos a
Spinoza ou Nietzsche.41 Acrescentamos, por nossa conta, o nome de Deleuze a essa pequena lista de filósofos que conseguiram "escapar" do platonismo.42 Sabemos o quanto isso significa em termos de potência do pensamento. Afinal, o platonismo – a despeito de ser, inegavelmente, uma das mais fantásticas produções do espírito humano – é como uma espécie de "virose" que, quando menos percebemos, já contraímos de novo. Sem exagero, diríamos que tão grande quanto o projeto de Platão foi o projeto de “reverter” a sua filosofia. Muitos ousaram, mas poucos o conseguiram verdadeiramente. Pois bem, a recognição está no centro da filosofia platônica. É preciso lembrar que conhecer, para Platão, é "relembrar", é "reconhecer".43 "Reverter" o platonismo, portanto, significa romper também com o modelo da recognição, que está presente na sua base. Como dissemos, o pensamento só é ativado quando uma força externa tira a razão de sua atividade recog34
nitiva (que, sem dúvida, pode ser essencial à vida orgânica, mas não ao pleno exercício do pensamento). A pergunta que agora precisaríamos responder é a seguinte: por que nossa razão tende a ficar no terreno da recognição? Poderíamos escrever um outro livro sobre esse assunto, para mostrar a natureza "reativa" da razão – que apenas se preocupa com sua própria sobrevivência, sem arriscar grandes VÔOS.44 Mas nosso interesse aqui é mais de ordem "mecânica" do que "causal", isto é, precisamos elucidar como funciona essa razão representativa. Comecemos, então, pela análise da seguinte questão: por que é mais fácil "re-conhecer" do que "criar"? Para respondermos a essa pergunta, precisamos definir melhor o que é a representação e quais são os seus critérios e leis. Para tal intento, faz-se necessário explicar, primeiro, o que Deleuze chama de generalidade45 e por que o seu reino se opõe ao da repetição. Comecemos, então, pela distinção entre objeto particular e objeto singular (distinção absolutamente necessária, se queremos realmente compreender a natureza dos objetos tanto daqueles que estão sob o signo da generalidade quanto daqueles que estão sob o da repetição). Um objeto singular é, estritamente falando, um objeto único e insubstituível. Neste sentido, todos os seres são singulares. Mas, no que conceme às leis da Natureza, todos os objetos participam de "leis menores" de organização (como as que regem os gêneros e as espécies). Nesse ponto, cada ser é um objeto particular. O reino das generalidades é aquele que engloba os seres particulares e a nossa conduta com relação a ele é aquela que nos permite trocar ou substituir esses seres, tanto quanto os seus termos, já que eles se equivalem. A ciência, de um modo geral, trabalha coril as generalidades. Não se diz que "só há ciência do geral"? Isso significa, portanto, que uma folha pode ser substituída por outra sem grande perda para quem a investiga. Em suma, o que queremos dizer é que o caráter diferencial que distingue uma folha de outra não 35 interessa à ciência, mas apenas aquilo que uma folha tem de similar com todas as outras. É por essa razão que as duas grandes ordens da generalidade são a semelhança entre os sujeitos e a equivalência
entre os termos que designam esses objetos particulares. Daí por que Deleuze, citando Pius Servien, distingue duas linguagens possíveis: a linguagem das ciências, onde cada termo pode ser substituído por outro sem qualquer perda de sentido, e a linguagem lírica, onde cada termo é insubstituível, podendo ser apenas repetido.46 Isso porque a linguagem poética – ou mesmo a da arte, em geral- não pertence ao reino da generalidade. Ela é o efeito de uma criação singular, única e insubstituível. Não podemos, portanto, confundir a generalidade com a repetição, afirma Deleuze47 Isso pode gerar sérios problemas, quando se trata de compreender de que maneira a repetição na natureza é possível. Afinal, que sentido há em dizer-se que "só há ciência do geral" e "só há ciência do que se repete"? Como falar em repetição, se a chuva que cai todos os dias, em uma mesma hora, não é nunca a mesma chuva? Como dizer que as gotas de orvalho, caídas no dia de hoje, poderão se repetir amanhã, se cada gota é única e só poderá retomar se transgredir as leis da Natureza? É isso que Deleuze quer mostrar: quando a ciência fala em repetição, está falando apenas da agem de uma ordem de generalidade a uma outra ordem de generalidade. Mas a repetição, se ela é possível, é de outra natureza:
Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um relevante contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão.48 A repetição é sempre "transgressora" – uma vez que ela vai em direção contrária às leis que impedem qualquer coisa de retomar. Na verdade, em vez de fundar a repetição, a lei nos mos36
tra como ela é impossível para os puros sujeitos da lei, ou seja, para os particulares. Mas a repetição é possível para Deleuze, embora não para o campo das generalidades. Por vezes, supomos realizá-la quando, pela força do hábito, acreditamos estar indo em direção contrária àquela que nos faz mudar o tempo todo. Mas, para Deleuze, a consciência só conhece uma lei moral para enfrentar a sua trágica condição no tempo: a do dever e do hábito. E, o que é pior, "ela só pode pensar a aplicação da lei moral, restaurando nela própria a imagem e o modelo da lei da natureza".49 Isso quer dizer que é pela generalidade que repetimos todos os dias as mesmas ações: levantar, tomar café, trabalhar etc. Nunca repetimos realmente, apenas fazemos de forma semelhante aquilo que já fizemos inúmeras vezes. Também aqui estamos no terreno da recognição e não no da repetição. Pois bem, só há sentido em falar de repetição daquilo que é absolutamente singular. E o singular é a diferença pura. Na verdade, Deleuze foi muitas vezes criticado por ter compreendido que, no eterno retorno (preconizado por Nietzsche), o que retoma verdadeiramente é a diferença e não o mesmo. Mas, baseando-nos na obra do próprio Nietzsche, parece-nos bastante coerente essa idéia. 50 Só à diferença é dado o direito de retomar, a cada novo ciclo, a cada novo instante. E como o leitor poderia acreditar que Nietzsche implicava no eterno retorno o Todo, o Mesmo, o Idêntico, o Semelhante e o Igual, o Eu e o Eu, ele que foi o maior crítico dessas categorias? Como acreditar que concebeu o eterno retorno como um ciclo, ele que opôs "sua" hipótese a toda hipótese cíclica? Como acreditar que tenha caído na idéia insípida e falsa de uma oposição entre um tempo circular e um tempo linear, um tempo antigo e um tempo moderno?51 A princípio, é verdade, este não parece ser o tema específico de nossa pesquisa, mas não nos deixemos enganar: rigorosamente falando, este é um tema do qual não podemos nos fur37
tar, se queremos compreender o que Deleuze entende por diferença pura. Afinal, no que diz respeito à questão da repetição, insistimos em dizer que, em Deleuze, ela supõe a diferença e não o mesmo, supõe o singular e não o particular: O encontro das duas noções, diferença e repetição, não pode ser suposto desde o início, mas deve aparecer graças a interferências e cruzamentos entre estas duas linhas concernentes, uma, à essência da repetição, a outra, à idéia de diferença.52 De um lado, temos então uma "pseudo-repetição" do que é geral; de outro, uma repetição do que é singular (que, por essência, seria contranatura).53 Mas, se levarmos em conta a definição de singularidade 54 em Deleuze, veremos que a repetição não só é possível como é necessária, em função das próprias leis naturais (que engendram o geral a partir dos elementos singulares). A esta altura, temos que ter um cuidado redobrado para não cairmos em interpretações equivocadas, que podem certamente comprometer a nossa pesquisa em torno do sentido que Deleuze atribuiu à noção de diferença. Atentemos, então, para um importante esclarecimento: singular e individual não são sinônimos. Não são os indivíduos que retomam, mas as singularidades – esses elementos essencialmente virtuais, que precedem a existência dos próprios seres. 55 Não apenas precedem, mas são a sua condição de aparecimento, já que se constituem como elementos genealógicos, elementos primários e primeiros. As singularidades retomam, as forças que agenciam tais singularidades também. Mas os indivíduos, estes nunca retornam.56 De fato, esse tipo de repetição revela-se impossível. Sobre as singularidades, Deleuze acrescenta: As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais ( ... ). Longe de serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas: elas se repartem em um "potencial" que não comporta
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por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se. 57 Na verdade, a questão de desligar o singular do individual tem uma razão de ser muito própria. Mas primeiro precisamos chamar atenção para um outro fato: o de que indivíduo e pessoa também são coisas distintas. Um indivíduo (moi) pode ser qualquer ser vivo, ao o que a idéia de pessoa (je) pressupõe a de consciência. O campo das singularidades, no entanto, não é nem o lugar do ser soberanamente individuado (mundo empírico) nem o "abismo indiferenciado", o "caos puro" – onde qualquer mínima determinação seria impossível. Afinal, mesmo sem possuir o mesmo grau de determinação do indivíduo, o singular não pode ser compreendido como algo indiferenciado ou indeterminado. Para Deleuze, o campo das singularidades é algo que se interpõe entre o "fundo negro" e o mundo físico, entre o caos e os corpos. Lugar da superfície dos acontecimentos, lugar do verdadeiro transcendental da natureza.58 É esta singularidade livre, anônima e nômade que percorre tanto os homens, as plantas e os animais
independentemente das matérias de sua individuação e das formas de sua personalidade ... 59 É sobre esses elementos transcendentais que as "forças" agem, é sobre eles que elas criam e recriam a própria
existência. Para Deleuze, Nietzsche foi o primeiro a explorar esse mundo de singularidades – que, para o filósofo alemão, chama-se dionisíaco ou vontade de potência (e que Deleuze chama de "energia livre e não ligada").60 Mesmo que ainda não esteja clara a definição de diferença pura, já temos alguma idéia da dificuldade que a representação clássica tem para apreendê-la. Afinal, como poderia a representação dar conta de algo tão inusitado, de algo que não guarda uma relação de semelhança com qualquer outra coisa? Como pode a representação, com um único centro, um único fun39 damento, julgar o que é díspar? Como pode ela representar o "irrepresentável", aquilo que não é cognoscível senão quando colocado sob o jugo da semelhança e da identidade? Porque a representação, no sentido clássico, é isto: a "imagem" semelhante de um objeto concreto. Como dizia o próprio Santo Tomás, representar significa conter a semelhança da coisa a ser conhecida.61 Na realidade, o termo "representação" é um vocábulo de origem medieval que indica a imagem ou a idéia (ou ambas as coisas) de um objeto de conhecimento qualquer. Num certo sentido, representar é pôr sob os olhos alguma coisa, mas é também tornar presente ao espírito algo que já esteve presente aos nossos sentidos. Para Leibniz, no entanto, as mônadas também têm uma "natureza representativa" – já que exprimem naturalmente todo o universo. Aqui, precisamente, o termo representação está sendo tomado em uma outra acepção possível: como sinônimo de correspondência.62 Podemos também dizer que, em Descartes, a "idéia", como quadro ou imagem da coisa, tem um sentido de similitude absoluta.63 Mas foi preciso que se assem muitos séculos, desde o aparecimento do termo "representação", para que uma crítica profunda de sua natureza colocasse em questão o valor do próprio conhecimento representativo. Estamos nos referindo à crítica nietzschiana.64 Segundo Nietzsche, todo conhecimento é efeito de uma dupla metáfora: na primeira, transformamos um estímulo nervoso em uma "imagem"; na segunda, a imagem adquirida é modelada em um "som".65 Este seria, primordialmente falando, o fundamento da representação e da linguagem. O problema, no entanto, estaria no fato de tomarmos essas metáforas pelas coisas mesmas e supormos conhecer o mundo quando não temos dele senão imagens. É neste sentido que a linguagem não diz as coisas, mas é somente uma metáfora delas. E é também neste sentido que o conhecimento, em Nietzsche, nada mais é do que a produção de um território à parte – constru40
ção humana que tende a igualar o não-igual, excluindo as diferenças individuais e os acontecimentos singulares.66 Apesar das claras diferenças, Bergson parece estar em sintonia com Nietzsche quando afirma que a representação clássica só nos permite conhecer as coisas de modo parcial, e nunca de maneira absoluta. Em seu O pensamento e o movente, Bergson afirma que o conhecimento representativo é prisioneiro da generalidade e, por esta
razão, não nos permite conhecer aquilo que um objeto tem "de único e, por conseguinte, de inexprimí vel':67 Em outras palavras, a representação não pode apreender o que há de diferente em cada um de nós, o que há de singular em cada objeto. À "representação clássica" Bergson opôs o que ele próprio denominou intuição – essa espécie de "simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto",68 coincidindo com ele. Somente a intuição poderia nos fornecer o absoluto de uma coisa, já que sua apreensão é feita "de dentro" e não "de fora" do objeto. Em poucas palavras, existe uma diferença de natureza entre a intuição e o conhecimento representativo (que é, por essência, relativo). Mas não teria esse mesmo sentido a idéia de "pensamento" em Deleuze? Não poderíamos também formular assim a crítica deleuziana à representação clássica, que tende a impedir-nos de conhecer o que há de verdadeiramente singular nas coisas – deixando-nos sempre no terreno das generalidades? E o pensamento não seria essa espécie de "intuição", que nos permite desvelar e pensar as diferenças, as singularidades?
Para Deleuze, o pensamento (mesmo em sua função recognitiva) chega a "estabelecer" a diferença. Só que, para ele, a diferença é o monstro, é o mal que precisa ser expiado. 69 Afinal, a diferença, dada a sua própria natureza, não se enquadra nos modelos engendrados pela razão. Daí por que, para salvá-la da escuridão caótica de seu próprio ser, será necessário torná-la objeto de uma representação orgânica. Para tal intento, será 41
preciso relacioná-la às exigências do conceito em geral. Mas o conceito é o instrumento, por excelência, da generalidade e, por isso mesmo, abarca sob um mesmo signo todos os objetos que se assemelham, ficando a diferença aí anulada em sua força singular. Mas, então, de que maneira a diferença é representada se isso contraria as próprias leis do que é absolutamente único? Para começar, a representação designa uma prova seletiva para determinar quais as diferenças que podem ser inscritas no conceito em geral. Num certo sentido, a "diferença genérica" (ou mais propriamente, a que se estabelece entre os gêneros últimos do ser) é grande demais, enquanto a "diferença individual" é, ao contrário, pequena demais para ser representada. Daí por que a diferença específica parece ser aquela que "responde a todas as exigências de um conceito harmonioso ou de uma representação orgânica':70 Afinal, completa Deleuze, "ela é pura, porque formal; intrínseca, pois opera na essência".71 Este é o primeiro momento da representação: tentar transformar a diferença ontológica em diferença conceitual, como forma de torná-la ível ao pensamento. É o que Deleuze chama de "o feliz momento grego": quando a diferença, subordinada aos quatro liames da representação (identidade no conceito, analogia no juízo, oposição no predicado e semelhança na percepção) torna-se apenas e tão-somente um predicado na compreensão do conceito.72 Uma terrível confusão, segundo Deleuze, foi feita desde os primórdios da filosofia: confundiu-se o estabelecimento de um conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral. Mas, quando se inscreve a diferença no conceito em geral, não se tem nenhuma Idéia singular da diferença, permanecendo-se sempre no elemento já mediatizado pela representação.73 Com isso, a diferença tornou-se pensável; tornou-se objeto de uma representação sensível, tornou-se algo palpável e visível. Sim, porque somente aquilo que nos envia 42
impressões (ou seja, os corpos) pode ser objeto de uma representação. Daí por que, para compreendê-la, é preciso que ela se apresente materialmente. Para Deleuze, no entanto, a diferença pura é o objeto, por excelência, do pensamento. Não a essência ou a substância segunda, como queriam respectivamente Platão e Aristóteles. Talvez até sejam, se tomarmos o pensamento como recognição ou como ciência pura; mas, se o entendermos como potência criadora (tal como Deleuze o entendia), seu objeto será a própria diferença, na sua mais pura "antologia". Tentar pensá-la sob os moldes da representação clássica é deixar escapar, exatamente, o que ela tem de original e singular, o que ela tem de único e "incomum". Seja ela finita ou infinita (a que tenta compreender o Todo), a representação não se desliga do princípio da identidade. Isso quer dizer que a tentativa da representação de apreender e pensar a diferença infinitamente pequena por meio de uma "razão suficiente" revela-se igualmente ineficaz. 74 É por este motivo que Deleuze afirma que o projeto que Leibniz havia empreendido para pensar a diferença também fracassou. Afinal, ao estabelecer a
convergência das séries e a compossibilidade dos mundos, Leibniz também não conseguiu escapar da insidiosa prisão da razão representativa. Isso porque também aqui a diferença foi estabelecida entre mundos que guardavam, primeiramente, uma relação de semelhança entre eles. Afinal, toda mônada é uma representação do universo inteiro ... Outro projeto que podemos distinguir de Deleuze é o de· Hegel, que além de confundir a idéia de "diferença" com a de "contradição" (resultado do mesmo raciocínio que estabelece a diferença apenas entre aqueles que se assemelham), também identifica a conquista do Absoluto com o estabelecimento da Identidade Plena (o que significaria, na verdade, o fim definitivo das diferenças).
II. Uma genealogia da diferença 43 Qual é o conceito da diferença – que não se reduz à simples diferença conceitual, mas que reclama uma Idéia própria, como uma singularidade na Idéia? GILLES DELEUZE
Como já vimos, a noção de diferença, em Deleuze, é no mínimo uma instância problemática. Num certo sentido, ela é a pedra de toque da filosofia deleuziana. 1 Mas o que é exatalte a diferença, em si mesma? Por que Deleuze afirma, de na contundente, que a representação clássica não pode reallte dar conta de sua natureza "rebelde e anárquica"? Esta é uma questão complexa que nos obriga a fazer pequenas digressões, em busca de alguns antigos sentidos atribuídos ao termo. Não que eles possam esclarecer substancialmente o conceito deleuziano (pelo contrário, veremos como cada um tende a re'er problemas locais que, em muitos casos, distinguem-se ueles apresentados por Deleuze); porém, um conceito ree sempre a outro conceito, mesmo quando se opõe, em essência, a esse outro. Isso quer dizer, então, que partir da análise de outras formas de apreensão da noção de diferença não vai esclarecer, de maneira absoluta, o que Deleuze entendia por ela, mas será, certamente, muito útil na compreensão geral desse termo. Afinal, o fundamental para nossa pesquisa é entender o que há de original na concepção deleuziana e, para alcançar tal intento, precisamos fazer um trabalho de verdadeiros genealogistas. Por genealogia entendemos (tal como Foucault redefiniu esse termo)2 uma pesquisa meticulosa e pacientemente "documentária”, que tem por objetivo traçar não uma linha direta entre os antigos conceitos e aquele utilizado por um filósofo específico, mas "reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenha46
ram papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna". 3 Daí por que a genealogia exige a minúcia do saber e um grande número de materiais acumulados e exige, sobretudo, uma grande paciência para se espreitar, onde menos se esperaria, aquilo que se procura.4 Sem dúvida, partimos do princípio de que Deleuze "reinventou" o conceito de diferença.5 É claro que poderíamos dizer que ele o tomou em uma nova acepção, mas estaríamos sendo levianos se afirmássemos que se trata apenas de uma outra maneira de compreender a diferença. Trata-se mesmo de um novo conceito. E que não se assustem os filósofos ortodoxos com o termo "reinventar", já que é o próprio Deleuze quem define a filosofia como "a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos"6 (uma definição que, aliás, torna manifesta a influência de Nietzsche sobre seu pensamento). Como o próprio Deleuze afirma, "( ... ) segundo o veredicto nietzschiano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construido numa intuição que lhes é própria".7 Essa revelação, porém, traz um problema para a nossa pesquisa: se a obra de Deleuze – bem como os conceitos engendrados por ela – deverá ser entendida dentro de seu próprio "plano de imanência", 8 que utilidade terá a nossa busca por outras formas de apreensão da diferença ou mesmo por outros conceitos de diferença? A resposta é mais simples do que parece. Afinal, precisamos lembrar que quando um filósofo constrói o seu universo conceitual, ele não o cria do nada. Ele o faz, sobretudo, no embate com outros filósofos (amigos ou rivais). 9 É por esta razão que só
conheceremos bem um filósofo quando conhecermos os seus principais "inimigos" teóricos. Seria melhor dizer, na verdade, que só compreenderemos bem um filósofo quando precisarmos melhor os seus agenciamentos com os outros pensadores. De uma maneira mais precisa, diriamos que só poderemos compreender um filósofo quando conhe47
cermos o "plano de imanência" sobre o qual ele criou os seus conceitos. É aqui que entram os outros filósofos; afinal, como dissemos, não existe criação ex nihilo. Todo conceito é complexo e "evidentemente todo conceito tem uma história".lo Eles sempre remetem uns aos outros, quer estejam num mesmo plano de imanência ou não. É assim que o conceito de essência remete a Platão sem, no entanto, deixar de remeter também a Heráclito (mesmo que isso implique uma espécie de negação do próprio conceito). Como entender um sem o outro? Deleuze, mais do que qualquer outro, afirmou o poder das relações e das conexões "maquínicas". "É assim que todos somos bricoleurs",11 afirma Deleuze. Uma afirmação, dentre tantas outras, que não deixa de causar mal-estar entre os "academicistas" que, injustamente, acusam Deleuze de não ter criado uma filosofia autêntica. De nossa parte, defendemos incondicionalmente a originalidade do pensamento deleuziano e, para expor a riqueza de suas idéias e de suas interpretações, tentaremos mostrar como e por que Deleuze se insere entre aqueles que traçaram novos planos e criaram novos conceitos. Para isso, trabalharemos transversalmente com os filósofos que mais o afetaram (no sentido espinosista do termo). Quanto à definição precisa da sua concepção de diferença pura, só chegaremos a ela se não pouparmos esforços nessa difícil empreitada que é a de dar voz a um novo conceitoY Sendo que dar voz significa fazê-lo falar por si, tanto quanto for possível fazer falar um conceito que está em uma "terra estrangeira"13 (que nos valha, então, o veredicto leibniziano da compossibilidade dos mundos). 14 Uma vez introduzida a questão, resta-nos apenas segui-la como a um fio em um labirinto, lembrando, é claro, que toda desatenção pode ter como resultado final a vitória do "minotauro" (ou seja, das teses equivocadas a respeito das concepções deleuzianas) . 48
A "diferença" entre os gregos 1. Heráclito e Parmênides: o devir e a imutabilidade do ser Como dissemos, nosso intuito não é remontar às antigas concepções de diferença. Até porque nem sempre os problemas suscitados em torno deste tema geraram conceitos originais. Esse seria um esforço, no mínimo, improfícuo (para não dizer impertinente). Nossa busca entre os gregos, por exemplo, justifica-se pela constante reativação dos conceitos de Platão e de Aristóteles nas filosofias posteriores (entre os quais, o concei to de diferença).15 Também Deleuze reativará os conceitos desses dois grandes filósofos – ainda que seja para confrontálos com os seus próprios. Mas o que é mais importante é que determinados elementos presentes nesses mesmos conceitos, 16 de um modo ou de outro, também estão integrados ao pensamento de Deleuze. Daí por que nos interessa muito conhecêlos. Afinal, precisamos saber de que maneira Deleuze os tomou em sua própria filosofia. Como, porém, o próprio Platão retoma questões ainda mais antigas (reativando inclusive alguns conceitos pré-socráticos), começaremos pelos pensadores que antecederam Sócrates. Lembramos, entretanto, que muito antes de o conceito de diferença ontológical7 ter sido concebido, a noção de diferença já se encontrava, direta ou indiretamente, dissolvida na questão do ser e do não-ser. Daí o entrelaçamento que verificaremos entre esses dois temas. A primeira pergunta que se coloca é a seguinte: poderíamos encontrar no bojo das reflexões pré-socráticas uma real preocupação com a questão da diferença? E seria essa uma preocupação de ordem lógica ou de natureza ontológica? Será que as explanações de Heráclito a respeito da natureza fugidia e do eterno devir das coisas já não trariam consigo o gérmen dessa especulação? O que queria dizer exatamente Heráclito com "o sol é novo todos os dias" ou com "descemos e não descemos nos mesmos 49
rios, somos e não somos", 18 senão que tudo se renova a cada instante e mesmo aquilo que parece imutável está inevitavelmente no grande devi r universal? É claro que a questão da identidade das coisas emerge aqui como um
problema que exigiria uma longa discussão. Não obstante, nosso objetivo é apontar, sobretudo, a idéia de que tudo é transitório: mesmo o nosso corpo (cuja idéia de duração temos sempre presente) é algo que se transforma constantemente. Em suma, nós somos e não somos. Mais precisamente, somos – a cada novo instante – diferentes de nós mesmos. Eis um mundo de diferenças, onde todo porto seguro não a de uma ilusão criada por nossa razão – única maneira de "escaparmos" de nossa própria vulnerabilidade e nossa instantaneidade num mundo que só nos "programou" uma única e derradeira vez. Talvez esse trecho de Nietzsche tenha uma inspiração heraclítica: No fundo, todo homem sabe muito bem que está no mundo apenas uma vez, a título de unicum e que nenhum acaso, mesmo o mais estranho, combinará por uma segunda vez uma multiplicidade tão bizarra. 19 É bem verdade que Heráclito ainda vai mais longe quando diz que "nós somos e não somos". É do puro devir que nos fala o filósofo de Éfeso; é do eterno movimento das coisas que estão no tempo. Do eterno perecimento e renascimento de tudo o que está no mundo e do préprio mundo. "Não vos deixeis enganar" – alerta-nos Heráclito. Nossa vista é curta, diria ele, e onde pensamos haver estabilidade só existem devir e movimento perpétuo. Sem dúvida, esse é um duro golpe para os pensadores da identidade, e não é sem motivo que Parmênides reage violentamente à perturbadora mensagem de Heráclito de que o ser é puro movimento. 20 Mas Parmênides não deixa por menos; sua resposta – um misto de genialidade e delírio – não poderia satisfazer melhor os futuros amantes do raciocínio lógico e os 50
defensores da identidade plena das coisas: o movimento é uma ilusão dos nossos sentidos; o ser é perfeitamente imóvel. É claro que este enunciado é bem mais de Zenão do que, propriamente, de seu mestre. Não obstante, Parmênides chega ao fim de sua vida com um enorme desprezo pelos sentidos, já que eles não poderiam apreender o ser em si mesmo (é preciso sutileza para perceber que é numa direção contrária que a crítica de Heráclito se dirige aos sentidos: para Heráclito, o ser é devir e movimento; ele está no mundo e se expressa no eterno jogo dos
contrários).n Para Parmênides, no entanto, o ser não pode estar no tempo. Se estivesse, ele pereceria e, portanto, não seria um ser, mas um vir-a-ser perpétuo. O ser, dada a sua mais absoluta perfeição, é necessariamente imóvel. Ouçamos, portanto, a definição de ser dada pelo próprio filósofo de Eléia: Resta-nos assim um único caminho: o ser é. Neste caminho há grande número de indícios: não sendo gerado, é também imperecível; possui, com efeito, uma estrutura inteira, inabalável e sem meta; jamais foi nem será, pois é no instante presente, todo inteiro, uno, contínuo.22 É claro que Parmênides está longe de ser um pensador da diferença. E é isso exatamente o que buscamos
compreender em seu pensamento: o seu desprezo pela mudança, pelo devir (atitude que se tornou constante na filosofia ocidental),23 É evidente que tanto a posição de Heráclito quanto a de Parmênides (a despeito de serem antagônicas, no que tange ao ser) despertam, por serem ambas de uma intransigência incomum, polêmicas infindáveis. Se de um lado há uma clara negação da identidade, do outro há uma absoluta recusa da multiplicidade e da diferença – necessariamente associadas ao não-ser. Afinal, se "o ser é e o não-ser não é", como pensa o filósofo de Eléia, tudo o que existe está compreendido nesse ser, que é uno e indivisível. Em sua perfeita unidade e indivisibilidade, fica 51
impossível pensar a diferença, que se torna tão-somente uma ilusão – ainda que tenaz – de nossos sentidos. 24 Na verdade, o caráter de atemporalidade do "ser parmenídico" impossibilita a sua degradação e, conseqüentemente, impede o aparecimento de algo que seja diferente dele próprio. Sem dúvida, Parmênides é o pensador da identidade plena, da imutabilidade e da perfeição – coisas que, aos olhos de Nietzsche,25 funcionam como subterfúgios inventados por homens que não toleram a existência em sua fugacidade e transitoriedade. Já Heráclito teria, na opinião de Nietzsche, conferido à existência um caráter positivo e afirmativo: Será que este mundo está cheio de culpa, de injustiça, de contradições e de sofrimento? Sim, grita Heráclito, mas
só para o homem limitado que vê as coisas separadas umas das outras e não no seu conjunto.26 Mas, se Heráclito insiste no caráter fugidio da existência, se não aceita a idéia de nenhuma substância plena e incorruptível, é porque sua visão só lhe mostra o incessante movimento das coisas – de onde ele conclui que o próprio ser é movimento e puro devir. O ser é, portanto, algo que está sempre se fazendo – um vir-a-ser constante. Daí por que ele jamais é o mesmo: como o sol que é novo a cada dia e como um homem que não se banha duas vezes em um mesmo rio. É difícil não ver aí uma exaltação do devir (e da diferença, portanto). Sem nos adiantarmos demais (já que não contamos ainda com os elementos necessários), chamamos atenção para um fato importante: no que tange ao aspecto ontológico, Deleuze parece estar muito próximo de Heráclito, ainda que o seu conceito de diferença seja algo bastante complexo para definirmos neste momento. Primeiro porque a diferença pura, no entender de Deleuze, não é algo que se apreenda nos corpos como uma marca visível, isto é, ela não é algo palpável, como uma propriedade ou um acidente – ainda que seja ontológica em sua 52
"essência" mais profunda. Uma ontologia em Deleuze? Estaria então Deleuze ao lado dos pensadores do ser? Bem, responderemos a esta pergunta mais tarde (no capítulo III), quando pudermos dispor de novas informações. Num certo sentido, poder-se-la alegar que Parmênides e Heráclito não falam da mesma coisa (ou que, pelo menos, não existe univocidade em seus discursos). Enquanto o olhar do primeiro dirige-se para o ser como uma entidade supralógica, o segundo fala do ser como algo que abrange a multiplicidade dos "seres" mundanos. Não obstante, é aqui exatamente que reside a crítica de Nietzsche 27 ao filósofo de Eléia (e ao que o próprio Nietzsche chama de "o momento menos grego" de todos os dois séculos da idade trágica).28 Segundo Nietzsche, é porque Parmênides tem seus olhos fechados para o mundo que ele pode chegar à insólita afirmação de que o ser é uno e imutável. Somente por um ato de pura abstração é que Parmênides recusa a multiplicidade e o devir incessante das coisas.
2. Platão e Aristóteles: alteridade e diferença específica Retomando alguns pontos das filosofias de Heráclito e de Parmênides (tendo aliada, é claro, a forte presença de Sócrates em seu pensamento), Platão construiu, com originalidade, a sua teoria acerca do ser e do devir. Para Platão, não se trata de negar a natureza de um ou de outro, mas de colocar cada um em seu devido lugar. Segundo Platão, Heráclito teria toda a razão em afirmar a realidade do devir, desde que não negasse a existência do ser em sua perfeita imutabilidade. É bem verdade que a realidade do mundo sensível foi, muitas vezes, discutida por Platão. Não obstante, Platão jamais ousou negar por completo a existência do mundo físico. Como sombra ou cópia, a realidade sensível guarda uma semelhança com o seu modelo inteligível e, ainda que precariamente, ela nos remete ao ser verdadeiro das coisas.29 Na realidade, a influência das idéias de Heráclito na filosofia de Platão já havia sido atestada por Aris53
tóteles30 – que, a despeito de ter sido o mais famoso discípulo de Platão, não concordava em muitas coisas com o seu mestre, sobretudo no que diz respeito à doutrinado ser.31 Segundo Victor Brochard, não existe, de fato, uma diferença de natureza entre o mundo sensível e o inteligível em Platão. Existe apenas uma diferença de grau eL'tre eles, na medida em que a diferença real entre os dois mundus refere-se ao fato de que em um deles as idéias encontram-se perfeitamente separadas, sem qualquer mistura (mundo das idéias), e no outro, essas idéias apresentam-se misturadas num verdadeiro caos. De acordo com Brochard, o mundo sensível participa do inteligível – o que desmontaria a idéia de que o mundo físico é apenas uma sombra destituída de qualquer realidade.32 De fato, Platão sofreu uma forte influência do heraclitismo em sua juventude – o que não torna tão surpreendente a defesa que ele faz dessa doutrina em um de seus diálogos. 33 Uma defesa, sem dúvida nenhuma, bastante relativizada. Afinal, uma adesão absoluta ao princípio do devir universal comprometeria todo e qualquer conhecimento das coisas em si mesmas. 34 Um real perigo para Platão, que tenciona atingir os sofistas sobretudo
Protágoras, autor do célebre aforisma "O homem é a medida de todas as coisas".35 No Teeteto encontramos uma longa discussão acerca do conhecimento, na qual Platão ite que a diversidade de opiniões e pontos de vista acerca dos objetos ocorre em razão da relação dos olhos com o movimento das coisas. Ele não nega, portanto, os dados sensíveis como impressões advindas dessa estreita relação entre sujeito e objeto, mas termina por desquali ficar tal relação, na medida em que jamais será possível estabelecer a verdade do ser por essa via. Para Platão, o ser não é ível de apreensão pelos sentidos (também eles efêmeros e ageiros, como tudo o que se encontra no tempo). O ser, na Sua plenitude, é objeto de nosso espírito. 36 Somente a razão pode ter o perfeito conhecimento do ser. A sensibilidade, sem o 54
seu auxílio, perder-se-la completamente no campo das percepções. Se, para Platão, conhecer fosse perceber, muitas seriam as maneiras de ver e de apreender um objeto (que seria, ele próprio, desprovido de qualquer identidade). Porém, o "objeto de conhecimento" deve ter qualidades que lhe pertençam, ou então ele não é coisa alguma.
o que, por exemplo, tu chamas "cor branca" não é algo com existência própria, nem fora de teus olhos nem dentro de teus olhos, nem em qualquer outro local que lhe assinalares, pois se assim fosse, ela existiria num determinado lugar, em caráter estável, deixando, por conseguinte, de formar-se no devir universal.37
o que podemos depreender da citação acima é que ainda que Platão não negue a concepção do fluxo heraclítico, ele não pensa como o filósofo de Éfeso, que coloca o próprio ser no cerne do devir universal. Como Parmênides, ele afirma que aquilo que é não pode, em hipótese alguma, variar e, portanto, não deve estar no mundo sensível. Um contra-senso dessa natureza lhe parece inissível: ou o ser não existe e Protágoras está certo ao afirmar que o homem é a medida de tudo, ou o que lhe parece mais provável – o ser está fora do devir, isto é, está fora do tempo. Ainda no Teeteto, Sóo"ates enuncia aquela que parece ser a opinião mais arraigada dos sofistas: Assim, minha percepção é verdadeira para mim, pois sempre faz parte do meu ser, sendo eu, por isso mesmo, o único juiz, de acordo com o dito de Protágoras, em condições de dizer que as coisas que são para mim existem mesmo, e também que as que não são para mim não existem.38 Mas a ciência revelar-se-la uma quimera se o veredicto de Protágoras tivesse qualquer fundamento. Não haveria, segundo esse preceito, conhecimento real, mas apenas e tão-somente percepções distintas e opiniões fortuitas. No entanto, se o ser 55
estivesse fora do mundo físico e se fosse objeto apenas de nosso pensamento, entender-se-la que, a despeito de todo o movimento incessante do universo material, as essências sobrevivessem intactas e incorruptíveis. É exatamente dessa maneira que Platão "arremessa a sua própria lança ao porvir", criando uma teoria que, de tão criticada, tornou -se referência obrigatória em qualquer trabalho de filosofia.39 Mas, apesar de Platão traçar de modo bastante singular a divisão entre o que é sensível (o mundo material) e o que é inteligível (as essências), este não é o único dualismo importante em sua filosofia. Para Deleuze, a motivação mais profunda do pensamento platônico é revelada não na divisão entre mundo modelar e mundo das cópias, mas na demarcação entre as cópias bem fundadas e as cópias mal fundadas (os "simulacros").40 Por aqui começamos a penetrar, definitivamente, na questão da diferença em Platão. Segundo Deleuze, "o motivo da teoria das Idéias deve ser buscado do lado de uma vontade de selecionar, de filtrar".41 Trata-se de distinguir, primeiramente, a coisa mesma de suas imagens. Mas, em segundo lugar, trata-se de estabelecer a diferença entre as cópias- ícones e os simulacros-fantasmas (ou então, de nada adiantará a primeira divisão estabelecida por Platão). Afinal, se não se pode distinguir a boa da má cópia, que valor tem o "original"? De que valeria um modelo se ele não pudesse ser imitado com perfeição, ou ainda, de que adiantaria a existência de um modelo se suas cópias pudessem furtar-se a ele sem qualquer prejuízo para ambos? Na verdade, o simula cro não é uma cópia de uma cópia, ele é a própria negação da cópia. Ele é a negação do modelo. Para Deleuze, a diferença en tre a cópia e o simulacro é uma diferença de natureza: A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecismo, tão
inspirado no platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o 56
homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem. ( ... ) A observação do catecismo tem a vantagem de enfatizar o caráter demoníaco do simulacro.42 Para Deleuze, o objetivo maior de Platão era encurralar o sofista, pois condenando aquele que se furta à ação de um modelo prévio, Platão estava condenando todo e qualquer estado de diferença livre, de distribuição nômade. "O simulacro é COllStruído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude."43 Distinguir os verdadeiros dos falsos pretendentes: eis a mais íntima motivação platônica. É preciso reconhecer aqueles que guardam do modelo a imagem, mas nunca a sua semelhança. É preciso estabelecer a diferença entre os que interiorizam a relação modelo-cópia e aqueles que apenas forjam externamente essa semelhança. Sem dúvida, caímos aqui no terreno da moral, pois somente a serviço de forças morais – como já havíamos ressaltado no capítulo anterior é que a razão pode se constituir como instância seletiva e juíza máxima de valores. É exatamente como juíza de valores que a razão condena tudo aquilo que lhe pareça um tanto ou quanto descentrado, desregrado, tudo aquilo que não se enquadra em um modelo "pré-fixado". É também por esta razão (e esta não é a única) que a diferença lhe escapa completamente à compreensão. Afinal, a diferença ameaça o perfeito
equilíbrio da razão, que opera basicamente com as relações de identidade e semelhança. 44 Ainda aqui, poderíamos estar falando de uma diferença que se dá na ordem do concreto – a que distingue fisicamente um ser de outro. Mas não é de uma diferença corpórea que estamos falando, e sim de uma diferença interior. Mesmo porque o simulacro produz um efeito de semelhança externa, ainda que use meios diversos daqueles usados pelas boas cópias – que têm no modelo o exemplo a ser seguido. Para Deleuze, então, a questão se coloca da seguinte maneira: o que é a diferença, em Platão, senão o monstro que se furta 57
à ação do modelo, à ação do Mesmo? E o que é o modelo do Mesmo, senão o da Identidade plena, de onde derivam,
externa e espiritualmente, os verdadeiros pretendentes? Esta é a única maneira de uma cópia atingir um mínimo de existência num mundo de puro movimento: "Em suma, é a identidade superior da Idéia que funda a boa pretensão das cópias".45 Os simulacros não guardam essa relação de semelhança espiritual, interna – o que implica uma perversão e um desvio essencial. A diferença em Platão é, portanto, um monstro moral que precisa ser encurralado e mantido no fundo do oceano.46 Para entendermos melhor esta afirmação, devemos recorrer à divisão efetuada por Platão no Pilebo47 entre o limite, o ilimitado e um terceiro gênero, que mesclaria os dois primeiros. A forma é o limite, a determinação; a matéria caótica (o devir) é o ilimitado; o mundo sensível (mundo das cópias) é um misto de limite e ilimitado. Na superfície, as cópias teriam contornos definidos e minimamente estáveis; no fundo, porém, seriam puros devires. Daí a sua inevitável degradação. Impedir, portanto, a emergência do caos parece ser um dos maiores senão o maior – objetivos da filosofia platônica. O simulacro é o caos, a desordem, a falta de um fio condutor, a ausência de um modelo. Nele, o caos parece transbordar, tamanha é a fragilidade de seus contornos. Num certo sentido, a imagem dos mistos platônicos parece antecipar a teoria da substância primeira de Aristóteles. Ali também, como em Platão, os seres físicos são um misto de matéria e forma. Mas, como Aristóteles não reconhece a existência de um mundo inteligível – modelo e causa do mundo material –, ele não vê o mundo sensível como o lugar do engano, onde as formas só aparentemente são verdadeiras. Pelo contrário, ainda que este mundo material seja corruptível, não há outra maneira de se conhecerem as substâncias segundas (as formas), senão pelo conhecimento dos corpos. Isso quer dizer que Aristóteles não considera o mundo concreto uma sombra, uma 58
degradação de um mundo ideal. A matéria, mesmo cambiante, ocupa um lugar de relevância no aristotelismo, sobretudo porque a substância segunda, em sua forma pura, nada mais é do que um mero ser de razão. 48 É claro que também Aristóteles parte do conhecimento dos seres individuais para chegar às noções gerais – verdadeiros objetos
do pensamento. E isso se deve ao fato de que "das substâncias sensíveis individuais não há nem definição e nem demonstração",49 em função de sua matéria ter, por determinação, o poder de ser e de não-ser.50 Em muitos pontos Aristóteles diverge de Platão, mas seguramente nenhum deles é tão relevante quanto a questão que envolve o ser. Primeiramente, ao negar a transcendência do ser, Aristóteles nega a existência ontológica das Idéias, o que constitui um golpe mortal na teoria de seu antigo mestre. As críticas feitas às "Idéias" não deixam dúvidas quanto à postura autenticamente antiplatônica adotada pelo estagirita: "Quanto a dizer que as Idéias são paradigmas, e que as outras coisas participam delas, é pronunciar palavras vazias e fazer metáforas poéticas". 51 Não faz qualquer sentido, para Aristóteles, a existência das Idéias como seres separados e unos. E uma das razões é que não se justifica, por exemplo, a existência do homem em si e do animal em si, quando o próprio homem é uma espécie do gênero animal. Haveria então uma Idéia para cada espécie existente? E o gênero, seria uma outra Idéia, diferente das espécies que ele abarca? Busquemos as respostas no próprio Platão, antes mesmo de avançarmos na filosofia aristotélica. Afinal, a definição de diferença em Aristóteles é uma espécie de "conseqüência lógica" da crítica do estagirita à teoria das Idéias.52 Com muito cuidado, poderíamos dizer que Platão talvez não tenha "essencialmente" se preocupado tanto com a questão dos gêneros e das espécies em sua enmpEow.53 Deleuze pensa assim, quando afirma que "A essência da divisão não aparece em largura, na determinação das espécies de um gênero, mas em profundidade, na seleção da linhagem".54 59
No Parmênides,55 por exemplo, onde a questão é posta pela primeira vez, Platão não a viu como um puro exercício conceitual, mas tinha como objetivo a explicação das realidades ontológicas. É claro que, preocupado ou não com a distinção das espécies, em um sentido mais preciso, Platão não poderia se furtar à questão da participação dos objetos sensíveis nas Idéias _ que lhes serviam de parâmetro. A questão da semelhança será discutida também no Parmênides, de forma a legitimar a idéia de que tudo o que existe só possui essa ou aquela carac terística se participa diretamente da Forma, que é una e indivisível.56 Mas Platão não poderia falar de identidade e semelhança sem mencionar o múltiplo e o dessemelhante, e será na esteira dessa reflexão que encontraremos a diáfora (a diferença) _ que, em Aristóteles, se converterá em diferença específica. Movido pela antiga discussão levantada pelos megáricos em torno da impossibilidade da predicação (ou seja, da impossibilidade de se dizer qualquer coisa a respeito do ser que não seja simplesmente "o ser é"), Platão ousou colocar o movimento no mundo das Idéias. Afinal, para que o pensamento fosse possível e não se convertesse em uma tautologia, seria preciso fazer com que as Idéias particiem umas das outras. A /(mvovw (Koinonia) ou comunhão das idéias só se tornou possível graças à introdução da "diferença" no mundo das identidades plenas. Mas o que isso quer dizer exatamente? Quer dizer, mais profundamente, que enquanto as Idéias guardam apenas uma identidade plena consigo mesmas, nada pode ser dito delas, a não ser que elas são; mas, ao introduzir a idéia de outro no mundo das formas, Platão reafirma a predicação e possibilita o pensamento. 57 ( ... ) teremos de necessariamente discutir a tese de nosso pai Parmênides e demonstrar pela força de nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é; e que, por sua vez, o ser, de certa forma, não é!58 60
Isso é o que se convencionou chamar de "parricídio teórico" (em alusão à morte da tese parmenídica, tão cara quanto inviável para a filosofia platônica), ou seja, a idéia de que uma coisa é igual a ela mesma e diferente das demais, ao mesmo tempo. É a diferença como alteridade que está aparecendo no mundo inteligível. De volta à filosofia de Aristóteles, a questão da diferença será colocada em outros termos. Ela nem será "o monstro que precisa ser mantido no fundo do oceano" (como Platão representa a diferença sensível) nem será uma pura alteridades9 – que não tem nada a acrescentar ao conhecimento das coisas. Para Aristóteles, a diferença é sempre algo que se estabelece entre os seres, sobretudo entre as espécies. As noções de outro e de alteridade são igualmente importantes para ele (até porque a diferença é sempre diferença entre dois ou mais seres); porém, não se trata de dizer apenas que um cão não é um cavalo, mas de apontar as diferenças que existem entre eles. Em outras palavras, a diferença é algo de concreto, de verificável, de representável. Não é uma pura relação entre as idéias,
mas designa uma marca real nos corpos. O caráter de imanência da filosofia aristotélica torna assim a diferença algo que se apreende nos seres físicos – diferença específica. Mas atentemos para um fato bastante importante: Aristóteles não se ocupou muito das diferenças individuais – mesmo porque, sendo elas cambiantes, não se constituíam como objeto de uma ciência demonstrativa. Segundo ele, "não existe ciência demonstrativa do indivíduo".60 Em suma, não existe ciência demonstrativa dos acidentes, já que eles não existem como substância, mas como algo que pode se efetuar ou não na substância. Por serem contingentes, então, os acidentes não integram a definição do ser mesmo que estejam entre as suas categorias. É dessa maneira que só importa a Aristóteles a "diferença específica", ou seja, aquela que se verifica entre as espécies, uma vez que as diferen61
ças individuais estão no âmbito dos acidentes e estes, de um modo geral, se aproximam muito do não-ser. Ao contrário de Platão, Aristóteles procura definir, com bastante precisão, os gêneros e as espécies – mas não sem antes definir o que ele chama de Ser. Para começar, diríamos que ainda que Aristóteles encontre boas razões para rejeitar a teoria platônica das Idéias, ele próprio encontrará dificuldade para definir o ser das coisas. Isso porque não é tão simples negar a existência das essências em si mesmas e explicar o fato de que existe uma multiplicidade de indivíduos com características comuns (que, por sua vez, distinguem-se de outros tantos, com outras tantas características). Seria, então, uma única "forma" a se individualizar e a se multiplicar, ou tantas "formas" quanto o número de indivíduos? Na realidade, para Aristóteles, o ser se diz de várias maneiras. É o que chamamos de equivocidade do ser.61 Um ser que se diz de muitos modos. É assim que Aristóteles o define no livro E da Metafísica: ( ... ) o ser propriamente dito é tomado em várias acepções: nós vimos que havia primeiramente o Ser por acidente, em seguida o Ser como verdadeiro, ao qual o falso opõe-se como Não-Ser; além disso existem os tipos de categoria, a saber: a substância, a qualidade, a quantidade, o lugar, o tempo e todos os outros modos de significação análogos do Ser.62
O ser, portanto, se diz ora por um atributo essencial, ora por um atributo acidental. Ao que tudo indica, Aristóteles (bem como Platão) tentava resolver um duplo problema: o primeiro diz respeito à sofística e à questão do ser como aparência e o segundo está ligado às "aporias" megáricas, que tornam impossível a predicação. Seja como for, a verdade é que Aristóteles preocupou-se demasiadamente com a questão da linguagem (o mesmo não se pode di62 zer de Platão). Afinal, se o ser se diz na e pela linguagem (não é sem razão que se costuma atribuir a Aristóteles o papel pioneiro na definição do conceito de representação), nada há de mais urgente do que o estabelecimento de uma linguagem apropriada e inequívoca para dar conta do ser. Mas, se para Platão o ser é a essência, para Aristóteles, o ser é a substância.63 E nas Categorias, ela será definida da seguinte maneira: ''A substância, no sentido mais fundamental, primeiro e principal do termo, é aquilo que não é nem afirmado de um sujeito, nem em um sujeito". 64 Pode-se dizer que a substância é O substrato onde todos os atributos ou categorias se atualizarão. Mas a questão não é tão simples como se apresenta. Para Aristóteles, existem dois tipos de substância: a substância primeira e a substância segunda. Por substâncias primeiras Aristóteles entende os seres concretos, os entes. Por substâncias segundas Aristóteles entende os gêneros e as espécies, e isso porque "de todos os predicados eles são os únicos a exprimir a substância primeira':6s Mas isso estaria resolvido se não encontrássemos, em uma outra agem de Aristóteles, a indicação de que Deus e as inteligências separadas compõem a substância primeira. 66 Além do que, na Metafísica (1069a) ele definirá três tipos de oumm (ousiai): os seres sensíveis, os eternos e os corpos celestes. Não obstante, de todas as definições, a mais considerada é aquela efetuada nas Categorias, e será sobre ela que recairão os maiores problemas. Para não nos alongarmos demais nesse ponto (que certamente extrapola os limites de nossa pesquisa), diríamos que algumas questões se colocam:
1. Quanto ao lugar que a substância segunda ocupa no mundo: se ela não tem existência fora do corpo, à maneira de Platão, como ela sobrevive à morte dos indivíduos? Se ela fosse apenas um ser de razão, uma forma pura, como ela estaria encarnada nos seres? 63
2. Não existe matéria sem forma, mas, por outro lado, somente a matéria é cambiante – o que quer dizer que a forma continua sempre a mesma. Como isso se explica, quando uma não sobrevive sem a outra? Se os gêneros e as espécies não existem fora do corpo que os individualiza, o que determina a semelhança entre os seres? Um princípio da própria matéria?67 3.
Como pode um corpo perecer sem comprometer a integridade da forma?
Na verdade, essas são questões a que o próprio Aristóteles não respondeu – ou respondeu de várias maneiras, o que também não ajuda muito. Para Étiénne Gilson, por exemplo, os problemas foram de tal ordem que o indivíduo, que a princípio era tudo no aristotelismo, foi reduzido a não mais do que o sujeito portador do universal – como se não tivesse mais qualquer função ontológica senão aquela de existir. 68 Com outras palavras, Jean Wahl parece confirmar o ponto de vista de Gilson: "O espírito de Aristóteles oscila entre uma filosofia que o conduziria ao platonismo que ele tanto combateu e uma filosofia que não chegaria a dizer mais da ousia do que o fato de que ela é". 69 Mas, respondendo ou não às questões suscitadas por sua teoria, 70 Aristóteles jamais negou a realidade do mundo sensível e é aqui que buscamos entender melhor o que ele chamou de diferença específica. Para começar, entre as substâncias segundas, Aristóteles considera a espécie mais substância do que o gênero – uma vez que ela está mais próxima da substância primeira (em outras palavras, a espécie sempre define mais uma substância do que um gênero: dizer, por exemplo, que Sócrates é um "animal" é bem mais vago do que defini-lo como "homem"). E é porque a espécie "determina" mais que ela também "diferencia" mais um corpo de um outro. Para Aristóteles, os seres que diferem quanto ao gênero não têm comunicação 64
entre eles, enquanto os seres que diferem apenas quanto à espécie (isto é, aqueles que pertencem a um mesmo gênero) têm por ponto de partida a sua geração recíproca. 71 Neste sentido, o termo outro aplica-se àqueles que, sendo de um mesmo gênero, apresentam uma diferença entre eles, ou então aqueles que têm uma contrariedade em sua substância.72 Para Aristóteles, segundo afirma Deleuze, "a diferença perfeita e máxima é a contrariedade no gênero, e a contrariedade no gênero é a diferença específica”73 Vejamos a questão bem de perto: o gênero e a espécie (primeira categoria do ser)74 são aqueles que, em primeiro grau, determinam e diferenciam ontologicamente os seres. Não obstante, os seres ainda diferem uns dos outros (uns mais e outros menos) pelos seus atributos acidentais. Daí por que se para Aristóteles a contrariedade é exemplo de diferença máxima 75 – já que os contrários se excluem absolutamente, quando um deles se encontra em um objeto –, os acidentes não serão menos exemplares no que tange à distinção entre os seres. Afinal, sendo casual ou fortuito, o acidente chega mesmo a ser considerado "alguma coisa vizinha ao Não-Ser".76 Talvez por isso o próprio Santo Tomás tenha oposto acidente a substância (ainda que as substâncias só se manifestem ontologicamente pelos seus acidentes).77 Como já mencionamos, a questão é complexa, já que os acidentes, sendo cambiantes e mesmo contingentes, não pertencem "essencialmente" à substância, não pertencem ao ser senão como um atributo exterior (que é somado a ele sem, no entanto, fazer parte de sua definição). Talvez por esta razão Aristóteles não tenha se dedicado tanto a pensar as diferenças individuais. Afinal, para ele, tais diferenças em nada modificam a natureza da substância. Mas poderíamos nos perguntar por que Aristóteles foi o primeiro a se preocupar tanto com a definição precisa do conceito de diferença. Talvez pela necessidade, que ele próprio percebeu, de fixar os sentidos das palavras, de modo a impedir a equivo65
cidade no discurso (decorrência evidente da guerra que ele travou, sem tréguas, contra a sofística). É verdade que Aristóteles dedicou uma grande parte de seus estudos ao problema da linguagem e, tal como o ser, a diferença precisava ser "mediatizada". Afinal, se a razão representa o mundo, é a linguagem que torna possível a comunicação
do ser e do próprio pensamento. Com Aristóteles, mais ainda do que com Platão, serão fixadas as bases do conhecimento. Daí por que a diferença será definitivamente aprisionada e submetida à identidade e à semelhança (pois só dos semelhantes se poderá ressaltar as diferenças). "É sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação."78 Essas palavras de Deleuze parecem dirigir-se mais a Aristóteles do que a qualquer outro filósofo. Afinal, ele foi seguramente o primeiro a estabelecer, com precisão, as "leis" da representação.79 Mas, antes mesmo de continuarmos nossa "peregrinação" em busca de uma melhor compreensão da idéia de diferença, gostaríamos de adiantar algo mais da "versão" deleuziana para esse conceito. Anteriormente, afirmamos que a diferença pura em Deleuze designa uma instância ontológica, ainda que não se possa confundi-la com a diferença empírica (aquela que se encontra nos corpos). A diferença empírica é apenas uma forma da diferença (e uma forma menor dela). Afinal, sabemos que a diferença, em Aristóteles, está irremediavelmente, submetida às leis da identidade e da semelhança ("diferente se diz das coisas que sendo totalmente outras, têm alguma identidade"). 80 Mas, se para ele a diferença é segunda com relação à semelhança, para Deleuze, a diferença é primeira com relação à forma. Afinal, quando a diferença torna-se a "determinação", isto é, um elemento físico, palpável e visível, ela deixa de ser diferença em estado puro, para ser mais uma categoria ou um atributo do ser (para usarmos uma expressão aristotélica). Não é sem mo66
tivo que, para Deleuze, a natureza "fugidia" da diferença escapa completamente à representação (que só pode apreender as suas formas menores). De qualquer forma, o que nos escapa é a profundidade original, intensiva, que é a matriz do espaço inteiro e a primeira afirmação da diferença; nela, vive e borbulha em estado de livres diferenças o que, em seguida, só aparecerá como limitação linear e oposição plena.81 É claro que temos noção de que continuamos dizendo tudo aquilo que a diferença pura não é (ela não é diferença
específica, não é exatamente o monstro que precisa ser aprisionado). A verdade é que ainda não definimos, com rigor, esse conceito. Até porque não achamos ainda que dispomos de todos os elementos para torná-lo claro. Evidentemente, não se trata de desconhecimento (poderíamos entrar "de chofre" na definição do próprio Deleuze). Trata-se, pura e simplesmente, de uma questão de estratégia. Afinal, como afirmamos inicialmente, acreditamos que o pleno entendimento desse conceito depende diretamente da compreensão e elucidação de certos elementos que estão no cerne da própria Idéia de diferença pura. Talvez alguns pontos comecem a ficar mais claros quando tratarmos da filosofia estóica (ou da leitura que Deleuze faz dela). Mas também não devemos esperar por respostas conclusivas, já que seria, por assim dizer, cedo demais para uma interpretação definitiva.
3. Os sofistas e o mundo dos simulacros Já é uma espécie de lugar-comum iniciar um trabalho sobre os sofistas e mencionar a célebre distinção que Platão estabeleceu entre eles e os filósofos. No entanto, não nos parece exagerado voltar a ela – sobretudo quando tencionamos revertê-la. Tarefa difícil, sem dúvida, já que Platão concebeu a sofística como um tipo de "antifilosofia", de "anti-saber" – colocando-a numa 67
posição diametralmente oposta àquela da filosofia. Aristóteles seguiu, pelo menos no que concerne aos sofistas, a orientação de seu mestre. E mesmo que as suas críticas incidam sobre ou tros problemas, trata-se ainda de lutar contra o discurso fragmentário dos sofistas. Como diz Platão, é preciso ter cuidado com a semelhança que existe entre a atividade de um sofista e a de um filósofo; é preciso que se entenda que a semelhança en tre eles é a mesma que existe entre o lobo e o cão, isto é, entre "o mais selvagem e o mais domesticado". 82 Talvez nenhuma outra comparação seja tão precisa quanto esta: temos de um lado o cão, o mais domesticado e o mais fiel amigo dos homens; e temos do outro o lobo, um animal arisco e esperto que, por uma questão de sobrevivência pessoal, precisa ar a maior parte do seu tempo enganando os homens. Mas os sofistas seriam ainda piores do que os lobos, já
que enganam por uma questão de princípio e não por necessidade. Bem, é inegável que a sofística tanto seduziu quanto escandalizou a Grécia pré-socrática. Não saberíamos, é verdade, sequer distinguir Platão de Sócrates, quando a questão é defender a idéia de um saber verdadeiro, eterno e imutável, em contraposição ao "saber" puramente ageiro e catastrófico dos sofistas. Afinal, era assim que Sócrates e Platão consideravam esse "conhecimento" que se fia no mundo sensível e no devir incessante das coisas. Ora, não há nada de fixo e permanente no mundo sensível, daí por que um conhecimento dessa natureza só poderia nos levar a inevitáveis contradições e paradoxos (os dois grandes inimigos da razão clássica). Não foi sem motivo que Aristóteles, mesmo não chegando a conhecer pessoalmente os sofistas,83 fixou, como regra básica de todo o conhecimento racional, o princípio da não-contradição. E não apenas isso: pode-se dizer que a filosofia aristotélica, assim como a de Platão, foi basicamente motivada pela sofística. Era preciso responder aos sofistas, mas também era preciso definir com maior precisão o domínio filosófico. E aqui não impor68
ta se Aristóteles concordava ou não com a transcendência das idéias: trata-se de defender o estável contra o instável, a verdade contra a ilusão, o ser contra o não-ser. Mas deixemos por ora essa querela. emos aos próprios sofistas. Pois bem, como sabemos, restaram pouquíssimos fragmentos originais.84 Se, por um lado, são poucos os fragmentos, por outro lado, transbordam as interpretações. Interpretações essas que atestam o grau de má vontade que se tornou comum para com esses "mestres" do saber. É claro que isso se explica pela tradição platônico-aristotélica dominante, que conseguiu inclusive modificar o sentido do termo "sofista" (que, na sua origem, quer dizer "sábio"). De sábios a "possuidores de um falso saber", a história da sofística é uma história de desdém e de ódio contra aqueles que, segundo Nietzsche, foram os primeiros a lançar um olhar penetrante sobre a moral; os primeiros a realizar uma espécie de "crítica da moral".85 Mas por que, exatamente, os sofistas foram alvo de tantos insultos? É aqui que se misturam as mais variadas interpretações. Mas, uma questão parece sempre integrar a maioria das críticas direcionadas aos sofistas: o fato de eles terem colocado em xeque não só o valor da verdade como o da própria possibilidade de um conhecimento efetivo das coisas nelas mesmas. E não se trata apenas de "colocar em xeque", trata-se de uma negação explícita da verdade e do próprio ser (em si mesmos, isto é, enquanto essências puras ou universais abstratos). Ora, se não há nada de universal ou geral em si, resta apenas o mundo sensível, com seus devires frenéticos e sua precária estabilidade. Resta apenas o mundo das sombras, o mundo das aparências, o mundo dos simulacros. Poderíamos citar entre as críticas mais freqüentes aos sofistas o fato de eles terem se ocupado demasiadamente com o não-ser (sem jamais se ocuparem com o ser) e também de não buscarem a verdade, mas apenas as opiniões e a coerência aparente dos discursos. Mas é claro que essas críticas não levam em conta 69
o fato de que os sofistas representam uma ruptura com as próprias idéias de ser e de verdade. Aliás, não o levam em conta exatamente porque é preferível atacá-los, depreciá-los por motivos até menores, a levar a cabo as suas reflexões. Sejamos mais claros: os sofistas eram conhecidos como mestres do saber; eles foram, num certo sentido, os primeiros professores gregos.86 Mas Platão subestima tal tarefa e os acusa de vendedores do conhecimento. Platão considera essa atividade ultrajante do ponto de vista da verdadeira filosofia – cuja intenção seria a de conduzir os homens ao caminho da verdade e do Bem. Mas é claro que esse é apenas mais um detalhe nessa verdadeira batalha contra a sofística. O principal problema reside, como dissemos, na postura que os sofistas assumiram diante das idéias de ser e de verdade. Obviamente, existem muitas diferenças entre os sofistas – porém, de um certo modo, todos eles têm em comum essa tendência para pensar o devír e a produção dos sentídos.87 Mas façamos uma breve análise de alguns fragmentos sofísticos, de modo a tornar compreensível o porquê desse horror generalizado que terminou por transformar o sofista num falso sábio e o "sofisma" num sinônimo de falso conhecimento ou raciocínio. Como sabemos, o mais conhecido e combatido fragmento de Protágoras diz que "o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são enquanto são e daquelas que não são enquanto não são".88 Para Platão, a frase tem um
sentido relativista e subjetivista, ou seja, Protágoras faz a verdade depender da experiência de cada um.89 Mas teria a frase de Protágoras esse significado? Poder-se-la apenas tomá-la neste sentido individualista – o homem (indivíduo) é a medida de todas as coisas? Ou talvez fosse o caso de se atribuir a ela um sentido mais genérico – o homem (a "natureza humana") é a medida de todas as coisas? Bem, para Eugene Dupréel, a segunda interpretação faria de Protágoras o precursor de Kant ou (quem sabe?) dos próprios empiristas modernos.90 Mas nada lhe parece mais equivo70
cado do que pensar Protágoras nesses termos. Protágoras, para Dupréel, é bem mais um "antinaturalista" do que um precursor do naturalismo. Afinal, ele foi o primeiro a rejeitar radicalmente todo recurso à physis como um dado em si que explica todas as coisas e justifica todos os valores. 91 Mas existe ainda uma terceira maneira de compreender a frase de Protágoras: talvez ele próprio tenha intencionalmente embaralhado os dois sentidos, de modo que não fosse possível distinguir o homem "geral" do "indivíduo" homem. Afinal, não existe uma forma "homem", um em-si que sirva de modelo para os indivíduos. Mas, apesar das sutilezas, não acabaríamos caindo novamente num outro tipo de individualismo? Sim, de fato. Hegel, por exemplo, atribui a Protágoras a descoberta do poder da "subjetividade", e também concorda que a verdade das coisas se encontra mais no homem do que nelas próprias. 92 É claro que Hegel e Protágoras apenas aparentemente estão de acordo, já que, sob outros aspectos, os seus mundos são muito distintos. Um outro fragmento, igualmente conhecido, foi também responsável por inúmeras controvérsias. Trata-se da tese de Górgias: "Nada é, se é, é incognoscível, se é e é cognoscível, é incomunicável". Esta frase, ao que tudo indica, visa a atingir diretamente Parmênides. De certa forma, Górgias segue as trilhas de Parmênides e se coloca no interior de sua própria ontologia. E, como diz Barbara Cassin, Górgias não contradiz Parmênides senão por fidelidade.93 Bem, seguindo o princípio de identidade parmenídica, é preciso dizer que "o não-ser é o não-ser", logo o não-ser é, pelo menos, ele mesmo. Nesse ponto, o não-ser é ser (então, o ser é também não-ser). Outra questão: se o ser não é múltiplo, se nada pode ser gerado nele ou a partir dele, se ele não está em consonância com os seres do mundo – qual o seu valor? E mais: se o ser existe e se é cognoscível, é necessariamente incomunicável, já que só o conhecemos por meio da representação. Ora, a representação é já uma mediação, assim como a linguagem se converte em uma segunda mediação.94 71
Ora, percepção e linguagem são heterogêneas (...). A linguagem dirige-se ao ouvido, e o ouvido é inapto para perceber as cores, que são o apanágio da vista; da mesma maneira, tudo o que constitui uma coisa, excetuando o som, é inível ao ouvido, portanto inexprimível pela linguagem.95 Vejamos se é possível fazer um rápido apanhado das questões sofísticas: 1. Os sofistas, de um modo ir, negam a existência da verdade em si mesma. Existem verdades, mas elas estão associadas ao discurso. Elas se fazem aí. Também não existe o ser em si. 2. Todos os fenômenos são verdadeiros, no sentido em que os fenômenos existem plenamente. Os sofistas, de fato, afirmam a mutabilidade das coisas. 3. A verdade não se define por uma correspondência entre o que é e o que é falado. Só há "verdade" no que é falado. O ser se constrói na linguagem. Os fenômenos não têm um sentido neles próprios. Dizer que eles são verdadeiros é dizer que eles são as únicas coisas que existem ainda que eles sejam absolutamente desprovidos de um valor intrínseco. Concretamente falando, um tigre que bebe água é apenas um tigre que bebe água (vejam que até o seu nome só tem sentido para nós, já que a natureza desconhece isso). 4. A sofística é bem mais uma logologia do que uma ontologia, já que o ser, na medida em que ele é, é sempre efeito de dizer.96 Na verdade, a sofística critica radicalmente tanto a metafísica quanto a ontologia. 5. A sofística assenta-se profundamente na questão da linguagem; ela não se ocupa dos seres concretos (vide Górgias: "Nada é, se é, é incognoscível"). Helena de Tróia é uma personagem da linguagem e um ser concreto, mas
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da Helena concreta só sabemos o que é dito; ela só existe na linguagem que a constrói. Fora da linguagem, não há nada para ser conhecido; mesmo que exista o mundo sensível, ele não tem nenhuma verdade em si, senão a de seu próprio existir. O ser mesmo é dado apenas na fala, ele só existe nela. Esses são apenas alguns dos pontos que selecionamos e que nos parecem apontar para outros problemas. No que diz respeito à questão da linguagem, Aristóteles preocupou-se até mais com esse aspecto do que Platão. Platão, é claro, já havia tratado, no Crátilo, da possibilidade de a linguagem associar-se ao devir. Mas isso significaria apenas apontar para as coisas incessantemente, visto que elas, no mundo, não param de variar. O dedo de Crátilo indica o silêncio a que estariam destinados os que se fiam no mundo sensível. Essa crítica serve diretamente aos so fistas, que parecem falar dos fenômenos e não das coisas em si mesmas. Mas seria um ledo engano supor tal silêncio; para os sofistas, não há nada mais tagarela do que a sofística. Não porque ela se preocupa em relatar os fenômenos, mas porque se ocupa em criá-los para além de sua existência material. O mundo é desprovido de significados, nem aqui nem acolá existem sentidos fixos e invariáveis. O mundo, é bem verdade, está pleno de sentidos (mas dos sentidos que conferimos a ele). ''A sofística desconstruiu a identidade do ser e da natureza, a imediaticidade de sua presença e, com elas, a evidência de uma fala que teria por tarefa dizê-las adequadamente."97 Mas uma nova "identidade" será instaurada, e não se trata mais de uma identidade do ser, mas de uma identidade precária que emerge no discurso como resultado de uma operação retórica. Esta é o que se poderia chamar de uma "unidade" inteiramente feita de diferenças. 98 Talvez Aristóteles tenha sido aquele que melhor percebeu por onde desembocariam essas teses sofísticas. Trata-se de um mundo inteiramente construí do pela linguagem. Ainda que existissem os seres em si (sensíveis 73
ou transcendentes), não teria a menor importância, já que não poderíamos mesmo dar conta deles. O nosso universo é aquele da linguagem e não o das coisas. Mesmo quando a linguagem se remete a elas, não há nenhuma possibilidade de uma adequação absoluta. Este é um mundo de miragens; com um agravante: ele é o único mundo que existe. Como dissemos, Aristóteles percebeu que deveria combater os sofistas ocupando-se igualmente da linguagem. Construiu uma lógica poderosa, pautada no princípio da não-contradição e da verdade como adequação. Mas a linguagem é limitada e não pode dar conta de todas as aparições dos seres. Daí por que Aristóteles trabalhou intensamente na fixação de um sentido único para um conjunto de coisas semelhantes (um nome geral). Era preciso ar por cima das "pequenas" diferenças e submeter todos os semelhantes a um princípio de identidade "préfixada". Mas, assim como a homonímia é a doença da linguagem, a semelhança é a doença da visão 99 e dessa maneira terminamos por deixar ar incólume o mundo das diferenças (pequenas ou grandes, mas sempre presentes para lembrar quão equivocado está o homem, quando afirma a identidade plena do ser). Mas as diferenças não se restringem à esfera física; as diferenças estão, sobretudo, presentes no campo dos sentidos. É ali que elas vão produzir os maiores acontecimentos e os maiores contra-sensos. É compreensível o horror que a sofística causou em seus contemporâneos. O que teria sido da filosofia se o discurso sofista tivesse triunfado? Sim, trata-se de um discurso. De um lado, um discurso forte, utilitário; de outro, o argumento fraco, um discurso que não se sustenta. Os próprios sofistas ensinaram aos filósofos os meios para vencêlos. Era preciso desmontar o discurso sofista, era preciso reduzi-lo a nada, a uma sombra, a um simulacro de sábio. Era necessário, mais ainda, excluir a sofística do campo filosófico. Torná-la uma espécie de não-ser da filosofia. Puro simulacro, puro fantasma ... O discur74
so vitorioso foi mesmo o de Sócrates e Platão; o discurso forte acabou sendo o de Aristóteles. Incrível como os sofistas despertaram tanto medo; incrível como a idéia do devir foi sempre tão assustadora para os filósofos. Mas, como dissemos, os filósofos reagiram com métodos semelhantes: os sofistas excluíram certas idéias e os filósofos, por sua vez, excluíram os próprios sofistas. É uma lógica perversa de exclusão, uma forma de medir forças e de impedir que o "fundo venha à tona", que o caos destrua os poucos contornos e as precárias
estabilidades que restam ao mundo sensível. Platão é mesmo um vitorioso na história da filosofia, mas não o suficiente para "varrer" por completo a sofística. Mesmo na Grécia, Filóstrato já havia dado uma resposta a Platão à altura de um mestre: ele disse que a sofística é uma "retórica filosofante" e que só os melhores filósofos poderiam ascender ao estatuto de sofistas. Já a Aristóteles, ele se dirige da seguinte maneira: se a sofística "parece filosofia sem ser", também os filósofos não são sofistas, embora pareçam ser.IOO Estamos muito longe de esgotar as questões sofísticas e sequer tivemos esta pretensão. Nossa intenção é apenas ressaltar o valor das interpretações sofísticas para o mundo moderno. Na verdade, é o próprio Deleuze quem afirma que o século XX liberou, por fim, os simulacros.Iol Uma afirmação que nos parece bastante afinada com a de Nietzsche, quando ele diz que a "nossa maneira atual de pensar" é, substancialmente, heraclitiana, democritiana e protagórica.l02
4. Os estóicos e a lógica dos incorporais Segundo Pierre Aubenque, é aos estóicos que devemos o uso do substantivo "lógica" para designar a ciência do verdadeiro e do falso. Mesmo que Aristóteles e, com justiça, por ser o fundador da lógica, ele próprio jamais a mencionou em sua classificação das ciências. E "se os estóicos fazem da lógica pela primeira vez uma ciência, é porque eles lhe atribuem um objeto 75
perfeitamente definido",103 afirma Aubenque. Esse objeto perfeitamente definido é o exprimível ou o significado (que hoje estaria mais próximo da idéia de sentido, tal como foi elaborada por Frege).104 Também, como Aristóteles, os estóicos preocuparam-se com a linguagem, embora por razões bem diferentes. Não se tratava, para o estoicismo, de fixar um sentido unívoco para as palavras (como era o objetivo de Aristóteles). Tratava-se, isto sim, de mostrar que a linguagem não visa às coisas diretamente. Na verdade, ela está irremediavelmente atrelada a um conteúdo de significações. Isso quer dizer que entre um significante (palavra ou som) e a coisa de que se fala intercala-se um terceiro domínio: o do sentido. Um exemplo disso é que duas pessoas, falando diferentes idiomas, podem ouvir um mesmo som e conhecer, igualmente, a coisa à qual o som se refere; porém, elas só se entenderão se souberem o conteúdo de significação do som proferido. A precariedade e mesmo a impossibilidade da comunicação derivam desse fato. "Neste sentido, os estóicos são os primeiros a levar a sério a etimologia da palavra 'lógica', que designa uma ciência ou uma arte da linguagem."los Mas o que é, exatamente, esse domínio do sentido para os estóicos? Qual a natureza do "exprimível"? Ele existe independentemente dos corpos? Para respondermos a essa questão, precisamos compreender melhor a filosofia estóica e o que ela designa pelo termo gênero supremo. Em primeiro lugar, a filosofia dos estóicos é verdadeiramente uma filosofia da imanência. Isso porque para o estoicismo,I06 não existe transcendência sob nenhum aspecto. O mundo inteligível e suprasensível de Platão (já duramente criticado por Aristóteles) será definitivamente rejeitado pelos estóicos – que reconhecerão apenas a existência deste mundo. O que quer que "exista" além dos corpos deve ser compreendido nesse gênero supremo – cuja característica mais "essencial" é ser absolutamente imanente. 76
Isso, porém, levantará sérios problemas, sobretudo porque os estóicos também dirão que apenas os corpos existem, ou seja, somente eles ocupam lugar no espaço e, portanto, só a eles podemos chamar de existentes. No entanto, os próprios estóicos consideram a "existência" de um campo de sentidos que, afinal, não é algo corpóreo. Ora, se ele não é corpo, ele não existe. E é isso mesmo que os estóicos responderão: o expri mível é um ti, ele é alguma coisa (mas não é a coisa, ou seja, um corpo). Chegamos, enfim, à teoria dos incorporais – aquilo que, não sendo um existente, subsiste ou insiste no tempo: "Não se pode dizer que existam, mas, antes, que subsistem ou insistem, tendo este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa, entidade não existente".107 De fato, os sentidos (bem como o tempo, o vazio e o lugar) não são coisas ou estados de coisas. Tudo o que pertence ao corpo – atributos, propriedades, tensões, qualidades físicas etc. –, só isso existe no presente cósmico. Aliás, o presente é o tempo da existência concreta. Quanto ao ado e ao futuro, eles apenas subsistem. "O materialismo estóico rejeitou o tempo, assim como o exprimível (lekton), o vazio e
o lugar, entre os incorporais, quer dizer, entre os seres com uma menor existência."lO8 Não se trata, porém, de um semiplatonismo, onde – de uma maneira ou de outra – verificamos a existência (ou semi-existência, no caso dos estóicos) de "objetos" que não são apreendidos pela nossa sensibilidade. Há, na verdade, uma profunda reversão da filosofia platônica. Isso porque, em primeiro lugar, os estóicos rejeitam a idéia de transcendência (e se Aristóteles já havia igualmente rejeitado tal hipótese, não é menos verdade que os estóicos eliminaram a ambigüidade do ser aristotélico _ que parece sempre hesitar entre a realidade e a inteligibilidade).109 Em segundo lugar, para os estóicos, só os corpos existem plenamente e somente eles podem ser objeto de uma representação sensível. E é aqui, exatamente, que encontramos a maior 77 diferença entre a posição platônica e a doutrina estóica. Isso porque, se em Platão as Idéias ou formas têm uma realidade suprema em contraposição aos objetos físicos – que apenas participam (por semelhança) das mesmas –, entre os estóicos, os incorporais só possuem um mínimo de existência porque são, eles próprios, efeitos ou acontecimentos, que têm a sua origem ou causa na relação entre os corpos. Dito de outra maneira: as Idéias, em Platão, estão fora do devir, possuindo assim uma identidade plena e inalterável. Mas, entre os estóicos, só existe o presente para os corpos e isso os torna, a princípio, inalteráveis. Logo, se as Idéias são efeitos das relações dos corpos, são elas e não os corpos que estão no devir. Convenhamos: os estóicos estão para Platão assim como Heráclito está para Parmênides. "Todos os corpos são causas uns para os outros, uns com relação aos outros, mas de quê? São causas de certas coisas de uma natureza completamente diferente. Estes efeitos não são corpos, mas, propriamente falando, 'incorporais'." 110 Para Deleuze, a maior e mais significativa reviravolta do platonismo é efetuada quando as relações entre a(s) Idéia(s) e as coisas deixam de ser relações de profundidade para se tornarem relações de superfície. 111 Isso quer dizer que não só é rejeitada a antiga verticalidade platônica – onde os objetos supra-sensíveis servem de paradigmas para os objetos físicos –, como também se elimina a idéia de que o verdadeiro embate travado entre os "pretendentes" (cópias e simulacros) era algo que se dava na profundidade dos seres (onde o caos, submetido à tirania das Idéias, imitava, com maior ou menor eficiência, o seu Modelo inteligível). Segundo Deleuze, as idéias são, elas próprias, efeitos, acontecimentos de superfície – que só "existem" porque derivam do encontro dos corpos. Isso porque, entre os estóicos, as idéias não são seres imóveis e perfeitos, mas acontecimentos que variam continuamente. Tudo sobe agora à superfície; não se pode falar aqui de recalcar o devir para a obtenção de um máximo de semelhança entre Idéias e corpos (Platão), 78
mas de liberar o devir e mesmo fazê-lo englobar, em seu cerne, as idéias. Num certo sentido, o devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento, ideal e incorporal (seja ele um fato da linguagem ou algo que se relacione ao tempo e à mudança).1l2 Isso porque, ainda que se possa falar de um "presente" do acontecimento – quando um acontecimento se efetua, se atualiza em um indivíduo ou em um estado de coisas –, é da natureza dos incorporais furtarem-se a toda determinação que se queira permanente. A "árvore é verde" porque esse é um acontecimento que se dá no presente, mas a "árvore verdeja" parece bem mais apropriado para falar de algo que (dependendo de suas relações com o tempo etc.) pode modificar-se. Ficar verde é um acontecimento, tanto quanto cortar-se ou envelhecer. Segundo Deleuze, foi Maurice Blanchot quem melhor sintetizou a ambigüidade do acontecimento, ao falar da morte como sendo aquilo que é ( ... ) ao mesmo tempo o que está em uma relação extrema ou definitiva comigo e com meu corpo, o que é fundado em mim, mas também o que é sem relação comigo, o incorporal e o infinitivo, o impessoal, o que não é fundado senão em si mesmo.113 É por esta mesma razão que Deleuze fala de uma imibilidade do acontecimento (ele não é bom ou mau, ele é
indiferente; é como o vento que sopra para os "bons", mas que também refresca os "maus"). Ele não é o que acontece em alguma coisa (o acidente aristotélico), ele "é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera': 114 Como afirma Deleuze, o brilho, o esplendor do acontecimento é o sentido, 115 que – sendo um incorporalnão pode ser definitivamente fixado sem que haja uma perda irreparável na compreensão de sua natureza fugaz. É aqui, exatamente, que começamos a perceber melhor o que Deleuze entende por diferença pura. Se ela não é
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o monstro perverso de Platão – o caos puro que precisa de um "pulso forte"-, se não pode ser confundida com a alteridade do mundo inteligível, e se não é, por fim, a diferença específica de Aristóteles, é porque ela é primeiramente algo que se aproxima muito da noção estóica de incorporal. Daí por que sua natureza não pode ser fixada senão quando ela deixa de ser ela mesma e torna-se um acidente (um atributo ou uma carac terística física qualquer). Mas o que nos leva a essa constatação? O que nos faz crer que a diferença deve ser entendida como um incorporal (ou algo bem próximo disso)? Estaria aqui, então, terminada a nossa busca pela compreensão do conceito deleuziano? Começaremos por responder à última questão. Definitivamente, não podemos dar por finalizada esta nossa primeira tarefa de reunir subsídios para compreender esse difícil e, por que não dizer, transgressor conceito de Deleuze. Repetimos que de nada adiantaria escolhermos agens aparentemente elucidativas na obra de Deleuze, se não soubermos contra quem e contra o que ele se dirige; com que idéias ele se afina mais intimamente e com que filósofos ele faz as conexões mais vitais. Quanto à primeira pergunta, a resposta não é nada simples; mas tentaremos respondê-la com os elementos que já possuímos. Vejamos: para Deleuze, ( ... ) o próprio do predicado como determinação é permanecer fixo no conceito, ao mesmo tempo em que se torna outro na coisa (animal se torna outro em homem e em cavalo, humanidade se torna outra em Pedro e Paulo) .116 Isso quer dizer, mais precisamente, que o predicado no conceito, em virtude de seu tornar-se outro na coisa, não faz parte dessa coisa – o que nos leva a crer que o próprio Deleuze defende a existência de algo que está para além oa nossa percepção dos corpos físicos. Como sabemos, no entanto, da pouca inclinação deleuziana para a metafísica tradicional, ousamos 80
dizer que sua concepção (pelo menos, por ora)117 aproxima-se profundamente da visão estóica. Muito bem: uma vez colocada a questão, poderíamos dizer que a diferença, ainda que permaneça fixa no conceito, também é outra nas coisas. Só que, ao contrário da Idéia (ou um predicado) que se distribuiu nas coisas, a diferença pura não é algo que está nos corpos, mas é aquilo que se estabelece entre eles. Neste sentido, a diferença não é um dado concreto, mas uma pura relação. Logo, se a diferença não é apenas uma Idéia em si (à maneira de PIa tão ) e muito menos uma qualidade ou um atributo de um corpo (ser branco, por exemplo, não é uma diferença), ela é algo que tem uma "existência" que se aproxima do incorporal estóico. Por que afirmamos isso? Ora, se a diferença não é um corpo ou uma qualidade dele, ela não existe como ser. Ela é uma espécie de quase-ser, o resultado do encontro dos corpos, um efeito, um acontecimento que os modifica na sua superfície. Em poucas palavras: o campo das diferenças parece ser, propriamente falando, o campo estóico dos sentidos.118 Em tese, a definição que buscamos estaria bem próxima de ser esclarecida se pudéssemos juntar ao conceito deleuziano de diferença pura os conceitos de transcendental, singularidade e repetição. Daí por que nossa busca precisa continuar ...
A "diferença" e o problema do ser no pensamento medieval No que tange à filosofia medieval (tão criticada por sua estreita vinculação com o pensamento religioso), ela desempenhou um papel fundamental na obra de Gilles Deleuze. Aparentemente distante do pensamento moderno e contemporâneo, a filosofia medieval é, ainda hoje, atacada e desprezada por muitos "profissionais" da filosofia – que não reconhecem o valor dos problemas suscitados por ela. Problemas que vão desde a questão do Ser (com a introdução do conceito fundamental de virtualidade, tão caro em nossos dias) até o problema dos univer81
sais na obra de Guilherme de Ockham.119 No que diz respeito à filosofia de Deleuze e ao tema que ora pesquisamos, é preciso ressaltar que entenderemos melhor a questão da diferença pura não pelas concepções medievais de
diferença (no geral, elas não ultraaram o ponto de vista aristotélico, afirmando-se como differentia specifica), mas, sobretudo, pelas questões que foram suscitadas a respeito do Ser. De qualquer modo, façamos aqui um breve resumo das diversas formas de abordagem da diferença. Em primeiro lugar, queremos ressaltar a importante contribuição de Porfírio à lógica medieval e à lógica de um modo geral. Para Porfírio, a diferença está entre os cinco predicáveis maiores, sendo ela constitutiva quanto à espécie e divisiva quanto ao gênero. Por exemplo: a racionalidade é a diferença que constitui a espécie humana e que também a distingue das outras do mesmo gênero. Isso quer dizer que a diferença é aquilo que, estando em alguma coisa, a identifica e a diferencia das outras. Mas também Porfírio identifica outros tipos de diferença: a diferença comum e a diferença própria, sendo a primeira aquela cujo acidente é separável do corpo (Platão está lendo e Platão não está lendo) e a segunda, aquela que é essencialmente inseparável (por exemplo, a racionalidade).lzo Muitos séculos depois, os escolásticos definiriam duas outras formas da diferença: numero differentia e specie differentia. Uma maneira de distinguir os seres que se diferenciavam segundo o número (como muitos ou poucos) daqueles que eram intrinsecamente diversos (eram outros segundo a essência). De qualquer modo, em todos esses casos, a influência aristotélica é inegável e mesmo decisiva. Daí por que a principal influência da filosofia medieval, na interpretação deleuziana do conceito de diferença, encontra-se em reflexões de outra natureza. Dando início, portanto, aos temas que julgamos mais pertinentes, do ponto de vista da influência que eles exerceram sobre Deleuze, começaremos por analisar uma antiga querela en82
tre os medievais: a questão da essência e da existência. Esta é uma questão bastante recorrente na Idade Média; podese mesmo dizer que ela ultraou todos os limites do tempo, gerando inimigos e adversários em regiões e épocas distintas na Cristandade (como Avicena e Averróes, Santo Tomás e Duns Scot etc.). Mas, para nós, o que há de mais importante nessas ceIe umas é o fato de essas discussões terem gerado em seu cer ne as noções de virtual e de
transcendental. No geral, costuma-se considerar, sem grandes dificuldades, que Avicena é o precursor da obra de Santo Tomás de Aquino – no que diz respeito, sobretudo, ao caráter de acidentalidade conferido à existência. Por outro lado, poderíamos também apontar Duns Scot como herdeiro "legítimo" de uma das mais valiosas noções avicenianas: a de essência neutra. Nada de especial nisso tudo, se o próprio Scot não fosse também conhecido por sua ruptura com o tomismo (aliás, a causa mais direta do pouco apreço que se teve ao seu pensamento). Sem dúvida, isso tende a dificultar um pouco a nossa compreensão da verdadeira influência que Avicena exerceu sobre ambos. Para esclarecer nossas dúvidas, partiremos primeiro da análise da disputa travada entre o pensamento averroísta e o aviceniano, no que tange ao estabelecimento do real objeto da Metafísica. Afinal, foi no bojo dessa discussão que nasceram as doutrinas do ser de Tomás de Aquino e de Duns Scot. Apesar de cronologicamente separados, Avicena e Averróes . foram colocados lado a lado nas conhecidas disputas medievais. De início, a principal tensão entre o pensamento de Avicena e o de Averróes dizia respeito ao objeto específico da Metafísica. Para Averróes, o objeto da Metafísica era Deus e as Inteligências separadas; para Avicena, porém, era o que ele próprio chamava de essência neutra. Mas o que Avicena entendia exatamente por isso? Por que ele foi tão duramente criticado por Averróes? Vejamos: segundo Avicena, a essência não é, em si mesma, nem universal nem singular. A essência é, para ele, neutra e sem ex83
tensão. Daí por que ela tanto pode aparecer individualizada quanto pode se tornar objeto de um conhecimento inteligível, ou seja, uma essência universal. As essências, diz Avicena, estão nas próprias coisas ou no intelecto. Por esta razão, podemos abordá-las sob três diferentes aspectos. Um primeiro aspecto é o da essência tomada em si mesma, isto é, enquanto não relacionada com nenhuma coisa ou com nenhum intelecto. Um segundo aspecto é o da essência enquanto incluída nas coisas individuais. O terceiro é o da mesma essência como presente em um intelecto ... 121 É claro que não podemos deixar de ver, nessa tese aviceniana, uma tendência platônica ou mesmo neoplatônica.
Talvez esteja aqui uma das grandes causas da severa crítica de Averróes a Avicena. Afinal, entre os medievais,
Aristóteles (chamado ele "o filósofo") desfrutava de um prestígio jamais igualado por nenhum outro filósofo. Entre os cristãos, por exemplo, desculpava-se-Ihe tudo, até o fato de ele ser um pagão. Na realidade, Averróes acusa Avicena de se ter deixado levar pela falsa idéia de que algo poderia existir antes mesmo de ser atualizado (ou seja, antes de se materializar). Mas, para Avicena, tudo o que existe tem uma essência, e é isso, primeiramente, que faz com que alguma coisa seja aquilo que ela é. É claro que, em quase todo discurso religioso (seja ele cristão ou não), a existência concreta pressupõe um Primeiro Ser ou Primeiro Motor – que seria a causa de todas as outras existências.122 Também em Avicena, é Deus quem dá existência às essências. Só que, antes de receber o seu ser, a essência já existiria como algo neutro. Por exemplo: para constituir um homem existente, "o ser é algo que tem que se somar à hominidade".123 Se, ao contrário disso, a existência já fizesse parte da definição de essência, só poderia haver um único ser existente. Ou o que seria para Avicena uma solução ainda mais extravagante 84
-, se a essência fosse primeiramente universal (e se a existência fizesse parte de sua definição), não poderia haver seres singuIares, mas apenas seres universais.124 De fato, para Avicena, algo pode existir em si mesmo (de modo neutro e sem extensão), sem necessariamente ter que existir individualizado na matéria. Dito de outra maneira, a existência concreta e material das substâncias primeiras de Aristóteles deixa de ser a única forma de existência possível. Mas, ainda aqui, o que mais nos interessa é o caráter de acidentalidade da existência, atribuído à filosofia de Avicena. Se ser acidental significa não fazer parte intrinsecamente de alguma coisa (neste caso, da definição mesma de essência), a existência em Avicena é acidental. Mas, apesar das aparências, existe uma diferença de natureza entre o ponto de vista aviceniano e o tomista (também reconhecido, pelos próprios escolásticos, por sua idéia da acidentalidade da existência). 125 Não sejamos precipitados; há uma série de sutilezas que nos fazem crer que Avicena está mais distante de Tomás de Aquino do que parece. Em primeiro lugar, é muito discutível, em Avicena, esse caráter de "acidentalidade" da essência. Vejamos por outro ângulo: é verdade que a existência não está incluída na definição de essência; logo, é algo que se lhe acrescenta. Porém, se pensarmos bem, veremos que essa existência – que não se encontra incluída – é a existência material, a existência atual de um objeto sensível. Nesse ponto, realmente, a existência é um acidente. Mas lembremos que, enquanto essência neutra (imaterial, imperceptível), ela existe. De início, já podemos apontar uma diferença bastante marcante entre Avicena e Santo Tomás: existir, para o segundo, significa necessariamente ser atual, ser ato e potência, corpo e alma, matéria e forma. Em poucas palavras, só as substâncias primeiras existem verdadeiramente. Não obstante, para Santo Tomás – certamente, o maior de todos os sistematizadores da filosofia aristotélica –, também é 8S
Deus quem doa a existência às coisas. Só que, ao contrário de Avicena, o ato criador da essência é também o ato "atualizador" da mesma. Isso quer dizer, em suma, que, ao criar uma essência, Deus lhe confere uma realidade concreta. Neste sentido, essência e existência não podem jamais se apresentar de forma dissociada. E, também neste sentido, não podemos dizer que a existência é um acidente em Tomás de Aquino. Afinal, como um bom aristotélico, ele não acredita que uma essência exista por si, a não ser quando atualizada na matéria. Sobre Santo To más, Étiénne Gilson nos diz o seguinte: Como poderia ele considerar a existência atual um dos acidentes da essência, visto que esta, sem o seu ato de ser, nada seria? Longe de ser, em qualquer sentido da palavra, um acidente da essência, o esse tomista é o próprio ato em virtude do qual a essência é. A existência atual não pode ser simultaneamente a perfeição constitutiva ou ato da essência e seu acidente. 126 Em uma certa medida, não há nada em comum, a respeito da existência, entre Avicena e Tomás de Aquino. Só considerando muito superficialmente a filosofia to mista aceitamos, de imediato, a idéia de acidentalidade da existência. É claro que as substâncias são causadas por Deus e, portanto, não possuem em si mesmas a causa de seu próprio existir. Mas isso não muda o fato de que existir, para o tomismo, significa ser atual, concreto, material.
Outro ponto que ainda distancia mais Santo Tomás de Avicena é aquele que diz respeito ao ato de criação divina. Em Santo Tomás, Deus é dotado de vontade livre; é ele quem concede existência às essências, por um livre ato de vontade. Um possível toma-se um existente quando Deus, que é o Puro Ato de Existir, doa-lhe o seu ser. Também isso é verdadeiro em Avicena; só que, no pensador árabe, Deus cria por pura necessidade e não por vontade livre. Isso quer dizer que não é por um ato deliberado que Deus cria as coisas, mas simples86
mente porque sua essência assim o exige. Parece-nos evidente, pela própria natureza do cristianismo, que Deus não poderia ser prisioneiro de sua própria natureza. Daí por que Santo Tomás não pode aceitar a tese infiel de um Deus escravo de si mesmo. a Deus cristão é, essencialmente, livre. Ele dá a todas as coisas o seu esse por puro amor. Não foi sem motivo que as teses avicenianas tornaram-se proibidas na Cristandade. No geral, não cometeríamos nenhum equívoco ao dizer que as teses árabes tiveram grande ressonância entre os cristãos. Afinal, entre outras coisas, elas tiveram o mérito de trazer novas luzes às antigas interpretações de Aristóteles. Não obstante, sob diversos ângulos, a influência de Avicena parece ter sido mui to maior em Duns Scot do que em Tomás de Aquino (apesar de Avicena ter sido muitas vezes considerado o precursor do tomismo). A presença do pensamento aviceniano na filosofia scotista é igualmente indiscutível, a começar pela idéia de ser comum – que, em muitos pontos, assemelha-se à idéia de essência neutra. emos então à filosofia scotista – cuja influência nos rumos da filosofia ocidental foi muito maior do que se costuma considerar. Para começar, diríamos que a filosofia scotista parece uma espécie de prolongamento das teses avicenianas, e neste sentido, parece-nos claro que Scot pode ser considerado o verdadeiro sucessor do filósofo árabe (apesar de algumas divergências cruciais entre eles). Quanto à teoria scotista do ser comum, pode-se dizer que ela é mais abrangente do que aquela preconizada por Avicena. Na verdade, para Duns Scot, a essência127 também não é, em si mesma, universal ou singular. Ela é indiferente à universalidade ou à singularidade. Também em Scot, a essência pode assumir uma forma "tripartite": ela é tomada como singular, quando existe atualmente; é tomada de modo universal e, portanto, como um objeto lógico, quando apreendida pelo intelecto e "tomada em si mesma e sem nenhuma outra determinação",128 constituindo-se como um obje87
to metafísico. Por exemplo, a "hominidade" não é nem o conceito universal de homem nem um homem singular. Ela é um "ser comum", um ser ontológico – cuja maior característica é não possuir determinação alguma. Aliás, tal como Avicena, Scot acreditava que era o ser comum, e não Deus e os anjos, o objeto específico da metafísica: "Concordo, portanto, com Avicena, que Deus não é o sujeito da metafísica"129 Até aqui, sem dúvida, Scot parece estar de pleno acordo com as idéias de Avicena (seja quanto ao caráter de neutralidade da essência ou quanto ao objeto da metafísica); mas, quanto às questões que envolvem a existência dos seres e a criação divina, haverá um profundo afastamento entre essas duas filosofias. Para Scot, a existência não é algo que se soma à essência, ou seja, ela não é, sob nenhuma forma, um acidente da essên cia. Para Scot, a criação é o ato pelo qual uma determinada essência se encontra já colocada na existência atual. 130 Dito de outra maneira, não existe uma diferença real entre ser e existir. O esse de alguma coisa, criado por Deus, inclui a sua existência. Em poucas palavras, a existência é um modo da essência. Mas, afinal, o que é esse "ser comum"? Seria o próprio Deus de Scot? Não exatamente; se fosse assim, que diferença poderia haver entre o objeto da metafísica e o da teologia? Mas é claro que, uma vez que Scot defende a univocidade do ser, isso torna a questão bastante problemática. Afinal, como unívoco, um ser não pode comportar elementos que não façam parte de Sua própria essência. Dito de outra forma, a univocidade do ser parece fazer de todos os existentes modos dessa essência comum. Mas tomemos cuidado com o Doutor Sutil: esse Deus não se confunde com o ser comum – pelo menos, não completamente (só em Espinosa o ser unívoco irá se confundir diretamente com a substância única e infinita que é Deus). 131 Não podemos esquecer, afinal, que estam os em pleno cristianismo medieval e que a afirmação da univocidade do ser já é, por si só, algo de extraordinário. 88
De fato, todos os gêneros, espécies e indivíduos, todas as partes essenciais dos gêneros e o ser incriado
incluem o ser qüiditativamente ... Portanto, aquilo para o que o ser não é predicado unívoco e qüiditativo está incluído naquilo para o qual o ser é unívoco deste modo.132 Uma vez que o ser, em Duns Scot, é unívoco e ontológico, surge uma questão: se o ser comum não é um corpo, ou seja, uma substância, e se ele não é também um universal, um ser de razão, que tipo de realidade ele tem? De um modo mais direto: o real comporta alguma divisão? Em suma, o ser comum é real, apesar de não ser algo que possa ser apreendido pela nossa sensibilidade? Sim, desde que se tenha em mente que o ser comum pertence a um realvirtual (ainda que ele tenha por característica fundamental abarcar todos os seres, visíveis ou não). O ser comum é, portanto, objeto do intelecto (ou seria melhor dizer, em termos deleuzianos, objeto do pensamento?). E ele não é só mais um objeto do intelecto, ele é o primeiro de todos os objetos: "Não obstante isso, digo que o primeiro ob jeto de nosso intelecto é o ser, porque nele concorre a dupla primazia, isto é, a da comunidade e da virtualidade". 133 Na verdade, o ser abarca tanto os seres reais, concretos, quanto as suas "propriedades" virtuais. Em outros termos, segundo Gilson, não há outro ser senão aquele que se encontra na mente divina. Logo, todas as coisas que existem participam desse ser que é único. Na verdade, "as idéias divinas estão em Deus e são Deus", afirma Scot. Ainda que elas sejam Deus em secundum quid, isto é, ainda que elas não sejam Dios qua Dios (ou Deus enquanto verbo divino). Isso quer dizer que as essências têm uma existência um pouco distinta da existência divina. Para Gilson, podemos verificar nesse ponto a exata medida da influência platônica sobre Duns Scot.134 É claro que, sendo Duns Scot um bom cristão, ele jamais ousaria romper com o criacionismo. Deus continua sendo a 89
causa de todas as coisas. Mas, mesmo correndo sérios riscos de se tornar obscuro entre os seus pares, Scot concebeu a idéia de que a essência só estaria realmente completa se nela estivesse incluída a sua existência individual. Não tanto pela alusão à existência individual (todo aristotélico considera a existência atual a mais perfeita), mas pelo fato de que, se é verdade que toda essência deve ser anterior aos seus modos, a essência en tão antecederia a existência. Eis o que podemos chamar de "o primado da essência", em oposição ao primado da existência de Santo Tomás. Isso quer dizer, exatamente, que a existência é concebida como um modo intrínseco da essência. O ser em Duns Scot, portanto, é absolutamente essencializado. Tudo o que existe existe em função de sua essência. Deus também existe em função de sua própria essência. Nesse ponto, Scot também discorda de Avicena: Deus tem essência, e a existência também é um dos modos da essência infinita – ao contrário de Avicena, para quem Deus é pura necessidade de existir (Necesse esse). A despeito, porém, das inúmeras questões que poderíamos ainda levantar acerca da filosofia scotista, ressaltamos que a maior herança deixada por 5cot são suas idéias de univocidade do ser e de virtualidade – noções bastante vitais à filosofia de Deleuze. É verdade que ele não as toma da mesma maneira, mas o princípio é o mesmo. Afinal, ao defender a idéia da univocida de do ser, Scot quer dizer que não conhecemos o ser, Deus ou mesmo os seres concretos por analogia. Em outras palavras, o ser não é semelhante e diferente ao mesmo tempo, como quer o tomismo (onde conhecemos Deus pela "infinitização" dos atributos humanos). Tudo o que existe participa não de um mesmo ser, mas de uma mesma voz, de um mesmo clamor e é isso que, posteriormente, afirmará o próprio Deleuze.135 Por fim, como dissemos desde o início deste item, devemos procurar elementos, na filosofia medieval, que nos levem 90
a uma melhor compreensão do pensamento deleuziano. Não tanto pelas suas considerações acerca do conceito de "diferença", mas, sobretudo, pelas suas reflexões acerca do ser. Afinal, como pensar a diferença entre os existentes, quando não se pode fazer, propriamente falando, uma distinção essencial entre eles? Como pensar a diferença em termos modais ou apenas levando em consideração os diferentes graus do ser? É claro que obteremos respostas distintas em Scot e em Deleuze, mas muito pouco entenderíamos da concepção deleuziana se não reconstituíssemos os seus agenciamentos mais profundos com os "filósofos da univocidade".
A "diferença" na filosofia moderna e contemporânea 1. Espinosa: univocidade e imanência Só poderemos entender a importância que a filosofia de Espinosa teve para o pensamento deleuziano se compreendermos as noções desenvolvidas pelo filósofo holandês. Na verdade, não seria correto afirmar que Espinosa é, propriamente falando, um pensador das diferenças. Mas, com toda a certeza, os conceitos produzidos por sua filosofia foram fundamentais para a elaboração do conceito deleuziano de diferença pura. Afinal, esse conceito encontra-se profundamente associado às idéias de univocidade e de imanência – que são as idéias cen trais do espinosismo.136 É bem verdade que a idéia da univocidade do ser não pode ser originariamente atribuída a Espinosa, ainda que
isso não mude o caráter original de sua filosofia. Afinal, foi o fato de ele ter associado o conceito de "univocidade" ao de "imanência" que o tornou persona non grata, tanto no meio judaico quanto entre os cristãos. Na verdade, essa foi a causa mais direta da dura perseguição religiosa que ele sofreu. A razão disso é bastante óbvia, para aqueles que conhecem o teor de sua filosofia: 91
uma única substância para todas as coisas, materiais ou imateriais; um único ser, imanente, com infinitos atributos infinitos: Deus. Mas o que significa exatamente isso? Para os religiosos, essa é uma espécie de negação da existência de Deus ou, o que dá no mesmo, uma forma direta de negação de qualquer possibilidade de transcendência do ser. Dito de outra maneira, Espinosa colocava Deus, os homens e todos os seres em um mesmo plano de existêpcia. Isso quer dizer que, para Espinosa, não existe uma diferença de natureza entre Deus e todas as demais criaturas deste mundo. Tudo o que existe pertence à natureza divina. Em poucas palavras: tudo é Deus ... Na realidade, a despeito de todas as críticas, o Deus de Espinosa também é a condição necessária para toda existência e para todo conhecimento. Deus é a causa de todas as coisas e a causa de si mesmo. Ele é o único e verdadeiro Ser deste mundo. Tudo o que existe não a de uma expressão desse Deus. Ele é, para Espinosa, a única e verdadeira substância: "toda substância é necessariamente infinita"137 e "afora Deus, não pode ser dada nem ser concebida nenhuma substância".138 Um religioso, ou qualquer simpatizante da teologia clássica, poderia perguntar como ficaria a relação entre Deus e os homens. Todavia, nós faremos tal pergunta de outra forma: o que somos nós, num mundo onde existe apenas uma única substância? Descartes parecia ter eliminado essa dúvida, ou, pelo menos, havia dado os primeiros os na tentativa de conferir ao sujeito do conhecimento um caráter ontológico. O Eu é uma substância pensantel39 – esta é a primeira certeza cartesiana. Provo a existência de Deus pela minha existência (ainda que não possamos negar que é, de fato, a existência de Deus que garante a existência do sujeito do conhecimento). Espinosa, no entanto, não concebe esse tipo de raciocínio – que lhe parece uma verdadeira inversão de valores. Como o homem pode ser 92
o primeiro elemento na cadeia do conhecimento? Se Deus existe e é a causa de todas as coisas, não deveria ser Ele uma idéia dada e não algo a que se chega por inferências? Uma única natureza para todas as coisas, uma única substância com infinitos atributos infinitos: Espinosa é categórico ao afirmar que não há nada fora do intelecto que não seja a substância e as suas afecções. Na sexta definição do primeiro livro da Ética, Espinosa já havia deixado clara a sua concepção de Deus: "Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita"140 O homem, portanto (e isso se estende a toda a Natureza), não pode ser compreendido como uma substância singular, criada por Deus por um ato de vontade. E isso por duas razões:
I. Não podemos ser substâncias porque não somos a causa de nós mesmos. Toda substância, segundo Espinosa, deve ser causa de si mesma – ou então, se está supondo que uma substância é causada por outra. Não seria, todavia, um contra-senso supor que uma substância poderia criar outra completamente distinta de si mesma? Se a natureza humana é diferente da divina, como crêem os cristãos e os judeus, supõe-se então que Deus criou algo diferente dele próprio, algo que não pertencia à sua essência. Um Deus com lacunas e com faltas – esta seria uma grande contradição. II. Deus não poderia ter criado o mundo ou qualquer substância, já que Deus não tem livre-arbítrio, em Espi nosa. Ele não poderia ter escolhido ser ou não ser de uma determinada forma. Na verdade, Deus é causa sui, isto é, ele é causa de si mesmo ("À natureza da substância pertence o existir")141 e é quando ele se causa – ou seja, quando ele "expressa" a sua essência – que ele causa todas as coisas.142 Deus é pura potência, é puro existir. 93
Ele existe necessariamente, independentemente de sua vontade. Ele "age somente segundo as leis da sua natureza".143 De fato, aram-se alguns séculos até que alguém retomasse a idéia aviceniana de Deus como "Necesse esse". Isso quer dizer, em suma, que Deus é pura potência. Nada de fora pode incitá-lo a agir; ele age porque sua natureza assim o exige. De onde se conclui que o mundo não foi criado por um ato de vontade, mas é extensão desse próprio Deus. A idéia de criação do mundo pressupõe um Deus desocupado, um Deus ocioso. Significa que, não mais que de repente, ele criou a Natureza por um ato de vontade ou por sentir falta de alguma coisa (uma outra idéia contraditória, já que um Deus perfeito e onipotente não poderia sentir falta de nada). Na verdade, quando pensamos na idéia de criação ex nihilo, não podemos deixar de pensar em Santo Agostinho. Para ele, a questão se colocava da seguinte maneira: ou bem Deus criou o mundo do nada ou o tirou de sua própria substância. Se o tirou de si mesmo, como explicar que parte da substância divina possa perecer? Isso não faz sentido para Agostinho. Se não tirou de si mesmo, tirou de onde? Não pode haver nada antes de Deus, já que é Deus quem dá o "ser" às coisas. Portanto, tudo o que existe foi criado por Deus do nada. Seguindo a orientação de Espinosa, diríamos que existe um duplo erro na teoria que defende a criação ex nihilo. Primeiro, parece-nos coerente a tese de que do nada, nada pode vir. Dizer que Deus criou o mundo do nada é dizer que, no princípio, havia Deus e o Nada. Isso significa que Deus era limitado por alguma outra coisa. Como um ser absoluto e infinito pode ser limitado por algo? Para Espinosa, a resposta mais coerente é que~ Deus é toda a extensão, tudo o que existe é Deus. É claro que se, nesse ponto, Espinosa está tão distante de Agostinho, eles parecem estar de acordo no que tange à idéia de beatitude. Para 94
ambos, o conhecimento e a beatitude são correlatos. Não há beatitude sem o conhecimento pleno de Deus e do que dele decorre. Mesmo com pressupostos tão distintos, eles parecem estar de acordo quando exaltam o conhecimento. 144
Tentemos, agora, definir com mais exatidão a substância espinosista: ela é, antes de mais nada, imanente; é absoluta e existe necessariamente; se expressa por meio de seus infinitos atributos infinitos (dos quais nós só conhecemos dois: o atributo pensamento e o atributo extensão). 145 Os atributos divinos são, por assim dizer, afecções de Deus. São o modo pelo qual Deus aparece no mundo. Cada atributo exprime, "de maneira certa e determinada", a essência de Deus – enquanto Deus é pura positividade e pura potência. E é como pura positividade e potência que a existência de Deus é pura produção. É por isso que não há sentido algum em se pensar no instante que antecede a criação do mundo. Tudo o que existe existe desde sempre. Mas onde está o homem nisso tudo? Já sabemos que o pensamento é um atributo de Deusl46 e não uma faculdade humana, como em Descartes (e isso agora parece-nos mais claro, já que o homem não é uma substância que existe em si mesma). Mas ainda não sabemos bem o que é o homem e como fica a sua relação com o mundo e com Deus. Sabemos, evidentemente, que o homem não é uma substância nem um atributo, mas só compreenderemos melhor o que ele é no segundo livro da Ética. Ora, sabemos que os atributos não são causados por Deus; eles são, na verdade, a sua essência. Diríamos, como
Deleuze, que, no primeiro momento, Deus se expressaria constituindo a Natureza Naturante e, no segundo, produziria a Natureza Naturada.147 Mas é claro que não devemos ver nessa afirmação de Deleuze a pressuposição de que existiriam dois instantes diversos, já que esse é um acontecimento único, um desdobramento necessário da essência de Deus. Segundo Espinosa, a Natureza Naturante seria 95
o que existe em si e é concebido por si, ou, por outras palavras, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus, enquanto é considerado como causa livre. 148 Por Natureza Naturada, Espinosa entende tudo aquilo que resulta da necessidade da natureza de Deus, ou, por outras palavras, "todos os modos dos atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas que existem em Deus e não podem existir e nem ser concebidas sem Deus". 149 Em suma, a Natureza Naturada abarca todos os modos da substância e, entre eles, o homem. Também os modos expressam a essência dessa subs tância única. Eles podem ser infinitos ou finitos. Como modos finitos, eles expressam de "maneira certa e determinada" a es sência de Deus, enquanto Deus se expressa em modos, ou seja, em seus efeitos. Mais precisamente, enquanto Ele se expressa como coisa finita.150 Isso quer dizer, portanto, que o homem é um modo de Deus. Essa definição, de qualquer maneira, complica ainda mais a nossa compreensão acerca do homem. Será possível falar em liberdade na ética espinosista, quando sabemos que o homem é um modo de Deus? Como é a relação entre os diferentes atributos divinos? Para começar, diríamos que a idéia de paralelismo entre os atributos (o termo é de Leibniz e parece- nos muito bem empregado) é a chave de que precisávamos para entender essa questão. Segundo Espinosa, "a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas". 151 Em outras palavras, tudo o que se a no atributo extensão se a no atributo pensamento. Eles não são, de modo nenhum, redutí veis ou dependentes, mas paralelos. Isso significa que se meu corpo é afetado por alguma coisa, meu espírito será igualmente afetado pela idéia dessa coisa (como veremos mais adiante). Mas o que é exatamente o homem? Como ele será pensado no espinosismo? O homem, bem como todos os demais seres, 96
será pensado de maneira bastante original nessa filosofia. Podese dizer que Espinosa rompeu definitivamente tanto com o modelo platônico de homem como com o hilemorfismo de Aristóteles. Na verdade, o homem não será mais pensado em termos de formas ou funções, mas na sua relação com os outros existentes. Para Espinosa, tudo o que existe está necessariamente em relação com os outros seres e deve ser pensado em termos de agenciamentos (noção bastante utilizada por Deleuze). O homem, como todo e qualquer existente, será um "modo" que exprime, de maneira "certa e determinada", a essência de Deus (enquanto Deus se apresenta como coisa extensa). É claro que a questão revela-se cada vez mais complexa, quando levamos em conta o fato de que o homem,
também para Espinosa, é constituído de corpo e espírito. Mas, apesar de todas as dificuldades que isso pode gerar, não podemos nos deixar enganar facilmente pelas aparências. Esse homem nada tem a ver com o homem platônico. O dualismo só aparentemente está presente em Espinosa. Vejamos por que; o dualismo pressupõe uma distinção qualitativa entre o corpo e o espírito e isso, sem dúvida, encontramos em Espinosa. Todavia, na tese espinosista do paralelismo não há qualquer espécie de dominação ou de submissão de um ao outro – algo particularmente comum em todas as teses dualistas. É claro que a afirmação de que "a primeira coisa que constitui o ser atual da alma humana não é senão a idéia" 152
parece mais complicar do que resolver o problema. Mas, se não perdermos de vista a continuidade do seu raciocínio, entenderemos que tudo o que existe existe em Deus, tanto como idéia como também como coisa extensa. Se Deus é pura produção, puro ato criativo, toda idéia em Deus "não é outra coisa que a idéia de uma coisa singular em ato". 153 Não há exatamente uma diferença de natureza 154 entre corpo e espírito, já que ambos são expressão de Deus. Não se pode pensar, nesse instante, em superioridade de um sobre o outro. Ambos são modos de Deus. 97
Como vimos, em Espinosa rompe-se com a idéia de um Deus transcendente e com um tipo específico de hierarquização dos existentes155 visto claramente na Teologia clássica. Todas as criaturas estão em Deus e por ele
são concebidas. Segundo Deleuze, o Deus imanente de Espinosa modifica a relação do homem com os demais existentes, tornando o problema da existência um problema ético e não mais mora.1S6 Para Deleuze, a questão ética substitui a questão moral; o bem e o mal em si tornam-se o que é bom e o que é mau em uma existência: A lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição Bem-mal, mas o conhecimento é sempre a força imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom-mau.157
o que importa, para Espinosa, é determinar aquilo que é bom ou aquilo que é mau para um existente.
158
Sem dúvida, essa questão parece ser vital para a ética espinosista. Afinal, os corpos estão necessariamente em relação uns com os outros, estão perpetuamente se agenciando. E isso, evidentemente, se justifica pelo fato de que tudo o que existe expressa uma mesma natureza, uma mesma substância. É claro que nem todos os agenciamentos serão possíveis, mas o que interessa é que a existência será pensada em termos de composições e decomposições. Um corpo se compõe com o meu quando aumenta minha potência de agir, enquanto um outro corpo decompõe o meu quando diminui o meu poder de ação. As idéias seguem essa mesma lógica, mesmo porque a noção de Composição e decomposição parece aplicar-se mais ao âmbito das idéias do que ao dos corpos. Os encontros determinam a existência. Os bons e maus encontros serão a temática espinosista no campo existencial. Todo encontro, na verdade, resulta do poder de afetar e de ser afetado dos existentes. Alguns encontros produzem um au98
mento de potência dos corpos, enquanto outros produzem uma diminuição da potência de agir dos mesmos. A potência é a própria essência dos seres, é o seu poder de ação. Nesse ponto, Espinosa parece antecipar a tese nietzschiana: potência e ação caminham pari u em uma alma livre. Todo bom encontro aumenta a nossa potência e a liberdade deverá ser pensada como a força de provocar tais encontros. Sabemos, porém, que o homem, tal como Deus, não é dotado de uma vontade livre; daí por que precisamos aumentar (mediante as relações e os agenciamentos que fazemos) o nosso poder de agir. Na verdade, de todas as idéias espinosistas, aquelas que exercem um maior fascínio sobre Deleuze são as que se referem à univocidade e imanência do ser, bem como a que diz respeito aos agenciamentos que cada ser precisa fazer para tornar-se mais potente e mais ativo, num mundo em que ele não nasce, sob nenhum aspecto, livre. O problema, como dissemos anteriormente, é fundamentalmente ético. Por isso, Espinosa propõe uma ética da alegria. Produzir alegrias, produzir encontros alegres, fortalecer nossa potência de agir – esta parece ser a proposta espinosista (ainda que Espinosa saiba quão difícil é produzir tais encontros). Podemos dizer que, para ele, o rancor, o ressentimento e a inveja são resultados diretos das paixões tristes, que envenenam a nossa alma, destruindo nosso poder de ação. O conhecimento, aliado aos bons encontros, torna o homem livre. Ou seria melhor dizer que a conquista do próprio conhecimento (o fato de formarmos idéias adequadas) é a verdadeira atividade. Somos tanto mais livres quanto mais conhecemos o funcionamento de nossa natureza e de todas as coisas que existem. A relação do homem com o todo é essencial na obra de Espinosa. E o que é Deus senão esse todo, que a tudo engloba, desde as menores às maiores criaturas (seria insensatez acusar Espinosa de religioso ou devoto, quando ele subverte todas as crenças mais arraigadas do homem).159 A beatitude e a liberdade, sem dúvida, 99
serão efeitos da plenitude de se desvendar a natureza divina cuja total imanência reivindica um exame mais acurado daquilo que o próprio Espinosa designava por Deus.
2. Bergson e o ultraamento da razão clássica a) Intuição x razão É na idéia de "ultraamento da razão clássica" que devemos buscar uma das motivações mais profundas do
bergsonismo. Se ela não é a única motivação, é pelo menos a mais vital, uma vez que Bergson não poderá atingir seus demais objetivos se não romper com ela. Ultraar a razão clássica significa, em última instância, ultraar o próprio conhecimento representativo – o que, por sua vez, significa romper com um modelo de conhecimento que
nos impede de apreender a essência das coisas em si mesmas. É claro que estamos pisando em ter;reno pantanoso; trata-se de uma metafísica bastante peculiar. Afinal, Bergson fala de essência, da coisa em si mesma, mas fala também em ultraamento da razão clássica. Até que ponto Bergson estaria próximo do platonismo, quando supõe uma essência em si? Mas, por outro lado, o que significa a sua crítica à razão e aos seus mecanismos de apreensão das coisas? Quanto ao platonismo, podemos dizer que Bergson está próximo a ele na mesma proporção em que dele se afasta. O que vem a ser isso, exatamente? Isso quer dizer que Bergson também acredita, como Platão, que é possível apreender a coisa em si mesma e que é a razão que pode entrar em contato com ela, sem qualquer mediação. Não obstante, é sobre a natureza da coisa a ser conhecida que eles diferem radicalmente. Para Platão, como sabemos, a Idéia – supra-sensível, eterna e imutável – é o objeto específico da metafísica. A razão precisa ultraar os dados da experiência para atingir aquilo que está vedado aos sentidos. Já em Bergson, o objeto primordial da rnetafísica parece-nos diametralmente oposto ao da metafísica 100
platônica. Para começar, devemos buscá-lo no mundo (e não para lá dele). Além disso, o objeto da metafísica bergsoniana não se caracteriza pela imutabilidade; ele é, ao contrário, puro movimento. E se podemos dizer, sem qualquer receio, que a metafísica de Bergson tem também por objeto a essência em si, devemos lembrar que a essência de um ser, no bergsonismo, nada mais é do que a sua própria duração. Em poucas palavras, a metafísica de Bergson é uma metafísica da duração, uma metafísica do tempo, enquanto que em Platão, é exatamente o tempo que é excluído do mundo das essências. Afinal, no platonismo, o tempo, associado ao movimento, é a causa imediata da degradação das coisas. Daí por que ele está ao mundo sensível, como "imagem móvel de uma eternidade imóvel". Voltaremos a essa questão posteriormente, quando tratarmos da duração. Por ora, precisamos compreender o que Bergson entende por razão clássica e por que é absolutamente necessário suplantá-la. Para definirmos melhor esse conceito e para entendermos que tipo de funcionamento da razão se convencionou chamar de "clássico", recorreremos a Aristóteles. Afinal, ele foi o primeiro grande sistematizador da razão representativa – ainda que este termo não lhe pertença. Para começar, em Aristóteles, todo conhecimento a pelo campo da sensi bilidade, o que significa dizer que a razão, tendo por finalidade representar o real, age sempre mediada pelas percepções que tem do mundo. A linguagem, como expressão da razão e das paixões humanas, terá, na verdade, uma função significativa no aristotelismo. Isso quer dizer, em outras palavras, que o significado é algo que emerge na e pela linguagem. Enquanto a razão tem a função de representar, de "espelhar" o mundo, a linguagem deve poder expressar o conteúdo dessa representação. Neste sentido, a linguagem torna-se o instrumento, por excelência, da razão representativa. Em linhas gerais, foi assim que Aristóteles definiu o funcionamento da razão clássica. Uma definição que não foi totalmente rejeitada por Bergson. 101 Na verdade, a idéia de uma razão que representa simbolicamente o mundo não foi, propriamente falando, criticada pelo bergsonismo (pelo menos, não no sentido de considerar-se essa teoria falsa ou equivocada). A grande questão para Bergson, porém, é poder ultraar essa razão representativa, que ele considera impotente para apreender o que há de absolutamente singular nos seres. Sim, porque para Bergson, a razão clássica só nos permite conhecer o que há de geral nas coisas. E não podemos esquecer que, no bergsonismo, cada ser vivo tem sua própria duração, isto é, uma essência que é só sua. É o modo como cada ser atravessa o tempo (que é, por sua vez, a própria Duração em si). Para Bergson, o modo de conhecimento clássico pressupõe a idéia de um afastamento inicial e essencial entre sujeito e objeto. Afinal, representamos aquilo que está fora de nós: o mundo e as coisas em geral. Substituímos a multiplicidade colorida do mundo por conceitos fixos e gerais e, posteriormente, chegamos a confundir a linguagem com a coisa, de tal modo que chegamos a ver mais realidade nos esquemas artificiais criados pela razão do que no próprio mundo. É exatamente isso que impede a razão de conhecer a coisa na sua profundidade e interioridade. Somente com um conhecimento que pressuponha uma espécie de "simbiose" entre sujeito e objeto – ou seja, so mente quando for possível falar em uma confusão, uma mistura, uma coincidência entre os dois – é que será possível falar em um conhecimento real. Dito de outra forma, existe um tipo de conhecimento que circunda o objeto,
que o analisa a distância e que dele tem apenas as suas coordenadas espaciais; e existe aquele que Bergson chama de um conhecimento "de dentro" do objeto, um modo de conhecer que implica uma aproximação direta, numa espécie de "simpatia" com a coisa a ser conhecida. Ao primeiro, Bergson chama de conhecimento representativo e ao segundo, de intuição. Para Bergson, apenas a 102
segunda forma de conhecimento permite ao sujeito conhecer realmente o "absoluto" de um objeto. 160 A primeira forma de conhecimento é, como dissemos, típica do racionalismo clássico, isto é, objeto e sujeito distinguemse necessariamente. É exatamente a distância que existe entre eles que permite ao observador estabelecer múltiplos pontos referenciais, com os quais ele tentará posteriormente recompor o objeto. Esse tipo de conhecimento, dito analítico, acredita que o "todo" de um ser pode ser reconstituído a partir da soma de suas partes – algo que Bergson acha impossível, pela própria natureza superficial desse conhecimento: Vejamos, por exemplo, o movimento de um objeto no espaço. Eu o percebo diferentemente segundo o ponto de vista, móvel ou imóvel, de onde eu o olho. Eu o exprimo diferentemente segundo o sistema de eixos ou de pontos de referência com o qual eu o relaciono, ou seja, segundo os símbolos pelos quais eu o traduzo. 161 Na realidade, os conceitos e toda a gama de símbolos que utilizamos na representação não podem dar conta do sentido mais interno, do que há de mais singular e que não pode ser expresso pela linguagem. Será preciso inventar novos conceitos para fazer ar o que há de fluido e cambiante nos seres. Ultraar o conhecimento representativo significa, em última instância, inventar uma nova linguagem para dar conta da intuição – que, por sua vez, apreende o objeto no que ele tem de único e insubstituível. Afinal, a razão, em seu funcionamento clássico, produz recortes, paradas e congelamentos num real que é puro fluxo, pura indeterminação. Ela tenta exprimir por símbolos estáticos aquilo que não pode ser fixado sem perder, com isso, a sua própria natureza. Em suma, para Bergson, o conhecimento intuitivo opõe-se ao conhecimento analítico (típico da razão clássica), uma vez que a análise, além de multiplicar ao infinito os pontos de vista sobre um mesmo objeto, 103 ainda pressupõe a idéia de um objeto paralisado, congelado em algum ponto espacial. Símbolos e pontos de vista, portanto, deixam o observador ao caráter de exterioridade de um objeto, sem poder jamais traduzir o que é, por essência, incomensurável nesse mesmo objeto, isto é, o seu espírito, a sua duração. 162 Tomando como exemplo o personagem de um romance, Bergson afirma: Símbolos e pontos de vista me colocam portanto fora dela; eles não me fornecem dela senão aquilo que ela tem em comum com as outras e que não lhe pertence propriamente. Mas aquilo que é propriamente ela, o que constitui sua essência, não poderia ser percebido de fora, sendo interior por definição, nem ser expresso por símbolos, sendo incomensurável com qualquer outra coisa.163
o que, enfim, a análise jamais poderá apreender de uma coisa são os seus devires, os seus movimentos interiores – indivisíveis e incomensuráveis. É a própria natureza do conhecimento analítico que impede o observador de atingir o interior dos seres, o seu absoluto. Ao contrário da razão representativa ou clássica, que recorta o real e congela o objeto num ponto qualquer de sua trajetória, a intuição pretende apreendê-lo em seu próprio movimento, coincidindo com ele, em sua própria duração. É assim que o exemplo da física serve diretamente a Bergson, como demonstração do conhecimento analítico. Afinal, para ele, a ciência pretende dar conta do movimento partindo da própria imobilidade, ou seja, reduzindo o movimento de um móvel ao somatório dos intervalos percorridos por ele, entre dois ou mais pontos fixados. Como, porém, reconstituir o movimento de uma coisa a partir de um espaço segmentado e de pontos fixos? Embora sejam sempre apresentados indissociados, o espaço e o movimento não são redutíveis entre si.164 E, se o movimento é apenas algo que se apreende entre dois momentos de repouso, como entender a duração (e o próprio 104
tempo em si) na sua simplicidade essencial, na sua indivisibilidade? Sim, porque a duração de um ser é o seu próprio movimento no mundo. E, tal qual uma música, sentimos a sua unidade ao ouvi-la e a perdemos quando decompomos o seu movimento em escalas e notas musicais.165
Na verdade, Bergson acredita que a ciência positiva trabalhe essencialmente com a análise (exceção feita às grandes descobertas científicas, sempre fruto da intuição de seus descobridores). Neste sentido, o seu conhecimento é e será sempre parcial, já que a possibilidade infinita de se multiplicarem novos referenciais e novos símbolos impede o conhecimento da coisa no que ela tem de mais simples e indivisível. Poderíamos dizer que a análise pode até dar conta do universo material, mas 'éla nada poderá saber a respeito do espírito que anima uma coisa. É por isso que, para Bergson, uma filosofia que tenha como método a intuição terá que primeiro apreender a coisa sem qualquer representação simbólica. Trata-se de uma apreensão direta, sem. qualquer mediação. Em uma segunda etapa, poder-se-la até recorrer à análise para decompor o objeto. Mas é preciso que a análise venha sempre depois da intuição, nunca antes. É preciso, por um esforço do pensamento, inserir-se no interior do objeto que se pretende conhecer, de modo que já não haja duas "durações" distintas (a do sujeito e a do objeto), mas uma única direção, um único movimento conjunto. Somente assim, para Bergson, teremos um conhecimento pleno da essência de um objeto. De outra forma, todo o conhecimento geral, tudo o que se pode aplicar indistintamente a uma e a outra coisa não permite jamais que conheçamos de fato um objeto na sua interioridade essencial. Como dissemos, em Bergson, todo ser tem uma duração. Isso quer dizer que todo ser tem uma essência particular e irredutível. E será essa essência o "objeto", por excelência, da intuição filosófica.
Embora alguns tenham, equivocadamente, atribuído às teorias de Bergson um caráter místico,166 é preciso esclarecer que, 105 antes de ser um "irracionalista", Bergson deve ser considerado um "neo-racionalista". Afinal, o que ele propõe é um novo funcionamento da razão, uma nova maneira de aplicá-la ao conhecimento do mundo e das coisas em particular. A intuição deve ser vista como uma segunda potência, um "outro" da própria razão. Para ele, é a intuição que permite que a razão possa dar conta de um real que é, verdadeiramente, uma "pura zona de indeterminação". Em outras palavras, a razão clássica opera com pontos fixos, conceitos "impermeáveis", fins e começos que recortam arbitrariamente o real, perdendo dele o que é a sua própria essência: o fluxo constante, o processo, o grande devir. É claro que tudo isso parece-nos ainda bastante vago, uma vez que o conceito de intuição não foi ainda definido com precisão. A princípio, pelo que sabemos, a oposição clara que Bergson faz entre ela e o funcionamento da razão clássica leva-nos a crer (e ele próprio afirmou isso de forma contundente) que a intuição é uma forma de conhecimento imediata. Neste sentido, uma vez que a intuição pressupõe o contato direto com a essência do objeto, dispensando mediações de natureza simbólica, parece-nos por demais evidente que a intuição é um ato simples de apreensão, em contraposição ao método analítico e representativo da razão clássica. Mas, por outro lado, precisamos lembrar que a intuição, para Bergson, é um método bastante refinado e elaborado. Em O bergsonismo, Deleuze chega mesmo a afirmar que "a intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos métodos mais elaborados da filosofia". 167
A questão, portanto, é mais complicada do que parecia ser em um primeiro momento, já que todo método parece implicar diretamente uma ou mais mediações. Se isso é verdade, o que significa dizer que a intuição é um ato simples? Ou então, se ela realmente dispensa símbolos, como pode ser comunicada aos outros? 106
b) Intuição: ato simples ou método rigoroso? Poderíamos responder à questão proposta neste novo item de uma maneira bastante direta: a intuição é, ao mesmo tempo, um método rigoroso e um ato simples. Mas, sabendo das inúmeras dificuldades que se escondem por detrás dessa afirmação, começaremos por explicar que, para Bergson, a idéia de simplicidade não exclui a de multiplicidade. De fato, a intuição não se atualizará antes de percorrer uma multiplicidade quali tativa e virtual. Toda uma pluralidade de acepções, de pontos de vista irredutíveis, deverá preparar o espírito para o ato simples de apreensão direta de uma essência. Não são pontos de vista que recompõem um objeto, mas pontos de vista múltiplos que nos fazem transcender, ultraar o próprio dado sensível, de forma a atingirmos a "duração" – essa "unidade múltipla" ou "multiplicidade unitária" que é a vida interior de todo ser vivo. Não é o ato de intuir, em si, que é complexo, mas a preparação imprescindível de que o espírito necessita para penetrar no interior dos objetos.
Nesse sentido, Bergson "distingue essencialmente três espécies de atos, que determinam as regras do método': Em outras palavras, ele distingue três momentos ou atos imprescindíveis para que o espírito possa enfim conhecer, por intermédio da intuição, a duração de cada ser. Digamos que, ao cabo desses três atos, a intuição possa emergir "naturalmente': Isso porque esses atos já representam, em si, uma ruptura com o modo de operar corrente de nossa razão, já representam a violência que se faz necessária para retirar a razão de seu estado de dormência, de torpor. Isso quer dizer, em suma, que a intuição é uma reversão do antigo funcionamento da razão. E é por isso que ela não pode se "dar" sem violentar o espírito. Afinal, é preciso que o pensamento comece por se problematizar ele próprio, tentando descobrir onde estão as principais causas de sua impossibilidade para apreender as coisas tais como elas são. Talvez isso pareça por demais metafísico: crer nas coisas em si, acredi168
107 tar na possibilidade de um conhecimento direto das essências, sempre particulares, ou mesmo acreditar que exista um princípio de inteligibilidade absoluta. Mas, se por um lado Bergson realmente recupera a metafísica, por outro, ele não o faz por uma negação do mundo físico. Ao contrário, sua meta física busca no mundo material os seus elementos. E é por isso que ela interessa tanto a Deleuze. De certo modo, poderia parecer difícil explicar o fascínio que a filosofia de Bergson exerceu sobre Deleuze. 169 Mas isso, para usarmos o próprio bergsonismo, dá-se em função de não conseguirmos ver o elo maior que se forma em torno dos grandes pensadores. Acostumados, como estam os, a analisar e decompor em fragmentos menores tais filosofias, perdemos a sua cadência e sua melodia essencial. Deleuze, ao contrário, agen ciou-se com cada um dos filósofos que irava – cada um com a sua própria visão de mundo – porque primeiramente intuiu-os em seu próprio movimento singular. Somente depois de confundir-se com eles, e somente depois de compreendê-los em si mesmos, Deleuze ousou falar deles. É por isso que, de certo modo, Deleuze é tão bergsonista quanto nietzschiano, e é por isso também que Deleuze é único (como todo grande pensador). Ele é todas as vozes e todas as durações que percorreu, ainda que tenha feito um caminho muito original, quando resolveu dar a sua própria versão das coisas. Mas, voltando aos três atos (ou às três regras) da intuição bergsoniana, podemos apresentá-los da seguinte maneira: o primeiro ato consiste em denunciar os falsos problemas, ou seja, fazer a prova do verdadeiro e do falso quando da apresentação de um problema (e não em suas soluções, como é feito correntemente), mostrando que existe uma relação intrínseca entre a verdade e a criação; o segundo consiste em lutar contra a ilusão que nos impede de reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza e as profundas articulações do real; o terceiro, por fim, consiste em colocar os problemas e resolvê-los em função do 108
tempo e não do espaço, ou seja, é preciso acostumar-se a pensar em termos de duração.170 Quanto à primeira regra, pode-se dizer que a grande questão de Bergson diz respeito à formulação dos problemas: um problema mal colocado leva-nos fatalmente ao erro. Isso é grave, já que nos acostumamos apenas a buscar soluções para problemas já dados. Buscamos o verdadeiro e o falso apenas no âmbito das resoluções (um tipo de preconceito social, além de ser infantil e escolar). l7l Habituamo-nos demasiadamente com as "palavras de ordem" e com a idéia do professor que coloca sem cessar os problemas, deixando de perceber que "a verdadeira liberdade está em um poder de decisão, de constituição dos próprios problemas: este poder semidivino". 172 De fato, Bergson está preocupado com a formulação dos problemas o que não significa dizer que ele tenha dado pouca importância às soluções. Ao contrário disso, ele acredita que um problema bem colocado já esteja, por si só, resolvido. Para ele, os verdadeiros problemas não são postos senão quando já se encontram solucionados. Cedo ou tarde, as respostas aparecerão, uma vez que elas já estão virtualmente presentes no próprio problema apresentado. Num certo sentido, cada problema tem a solução que merece, o que quer dizer que uma questão mal formula da poderá nos levar a encadeamentos falsos. Mas formular ou criar um problema para dar conta de uma determinada realidade supõe, de início, uma percepção aguçada, para determinar onde e em que medida um problema apresentado se converte em um falso problema. Em Bergson, os falsos problemas são de duas ordens: os "problemas inexistentes" e os "problemas mal colocados". Um problema inexistente é aquele que confunde o "mais" e o "menos"; tendemos, por exemplo, a achar que há menos na idéia de não-ser do que na de ser, enquanto uma reflexão mais profunda revela-nos o contrário. O
não-ser traz, em si, a idéia de ser mais a operação lógica de negação generalizada e mais o motivo psi109 cológico particular dessa negação. Isso também ocorre com as idéias de desordem e de possível. Além do que, convencionouse pensar que as idéias de desordem, possível e não-ser sempre antecedem as de ordem, real e ser – o que, por sua vez, limita muito a pesquisa acerca desses temas. Em geral, não se supõe jamais a existência de dois ou mais tipos de ordens, mas apenas uma "ordem em si", que se opõe a tudo o que não é ela mesma. Quanto aos "problemas mal colocados", Bergson cita aqueles que tendem a agrupar arbitrariamente coisas que diferem em natureza. Bergson refere-se aos mistos mal analisados, essas "misturas impuras" que apenas confundem o filósofo. Tomemos como exemplo o misto espaço-tempo. Não é sem motivo que Bergson acusa a ciência e a própria filosofia de jamais terem conseguido dar conta do tempo. O espaço e o tempo são de naturezas distintas; enquanto podemos ligar o primeiro ao universo material, o segundo é da ordem do espírito. Isso não quer dizer que, para Bergson, o tempo seja apenas psicológico. Existe um "tempo em si", um "tempo puro" que abarca todos os tempos ou durações singulares. Não obstante, tende-se sempre a confundir a natureza de um com a do outro; mais especificamente falando, tende-se a entender a duração de forma espacializada (o tempo é a medida do movimento). Na verdade, Bergson não critica os mistos em si (já que a própria experiência não pára de formá-los em nós); o que ele critica é que, ao representarmos as coisas assim, corremos o risco de não saber mais distinguir a natureza do espaço e do tempo. A segunda regra do método, na verdade, é uma extensão da primeira, ou melhor, o problema dos mistos mal analisados exigirá do filósofo o cuidado com as ilusões que o impedem de ver, com clareza, a verdadeira diferença de natureza que existe entre as coisas. Isso quer dizer que para que seja possível estabelecer "as diferenças de natureza e as verdadeiras articulações do real", o filósofo terá de empreender uma batalha contra a própria ilusão que engendra tais mistos. Voltando ao espaço e 110
ao tempo, devemos saber reconhecer as duas presenças puras – a da duração e a da extensão –, assim como, nas percepções-lembranças, precisamos identificar o que é da ordem da matéria e o que é da ordem da memória. Senão, o que teremos é a falsa idéia de que essas coisas diferem em grau – o que seria um erro grosseiro, ainda que muito comum. E são esses mesmos erros que nos levam a produzir os falsos problemas. Daí por que torna-se vital dividir um misto conforme as suas tendências e analisá-lo de modo bastante profundo. Já a chamada "terceira regra" dá o sentido primordial da intuição: "pensar intuitivamente é pensar como duração".173 Isso quer dizer, em outras palavras, que a "inteligência" parte normalmente do imóvel para apreender a mobilidade, enquanto a "intuição" parte do movimento, considerado a própria realidade, fazendo da imobilidade apenas um breve instante de abstração do espírito. À estabilidade, Bergson contrapõe a instabilidade daquilo que está em constante fluir. Como o próprio Bergson afirma, a intuição "é a visão direta do espírito pelo espírito".174 Daí por que pensar intuitivamente é entrar em contato imediato com a essência de uma coisa, é percebê-la no seu próprio movimento, é apreendê-la em termos de duração e não na sua materialidade física. É preciso exercitar o espírito nessa prática. Repetindo o que dissemos no início deste item, Bergson parece muito próximo de Platão, seja pela crença de que o espírito pode entrar em contato direto com a essência das coisas, seja por sua obsessão em desmembrar os mistos que se apresentam ao nosso espírito – de modo a atingir o ser na sua pureza essencial. Mas não nos enganemos: a motivação bergsonista é bem distinta da de Platão. Platão quer atingir a imobilidade das essências, quer ultraar os dados da sensibilidade para atingir o imutável, o eterno. Bergson também quer o eterno, só que, para ele, o eterno é o movimento, o devir. Se a metafísica de Bergson também ultraa os dados sensíveis, ela o faz apenas para alcançar as condições da experiência con111
creta e não para atingir um mundo supra-sensível. 175 Também essa é uma filosofia da imanência, apesar dos possíveis contrasensos produzidos em torno dela. A intuição, portanto, é o método da filosofia bergsoniana. Se ela, no entanto, parece mais complexa do que o próprio Bergson afirma ser, isso se deve ao fato de que nosso conhecimento das coisas precisa ser reformulado em
sua essência mais profunda. É preciso preparar o espírito para o ato simples de apreensão da duração, ainda que o ato preparatório seja um exercício que violenta o ritmo "natural" de nosso pensamento. É neste sentido, portanto, que a intuição é um ato simples e um ato complexo. Afinal, a própria natureza é repleta de exemplos de atos simples que envolvem uma enorme complexidade: a própria vida aparece de um modo simples, sem deixar de trazer em si o mais complexo dos mecanismos. c) Duração: uma ou várias? O conceito de duração, em Bergson, é por demais problemático para ser aprofundado em nossa pesquisa. Não obstante, precisamos abordar este tema, mesmo que seja em linhas gerais, pelo grande interesse que ele despertou em Deleuze. Pensar a questão da duração é pensar a própria questão do tempo, o que significa dizer que responder se há uma ou várias durações é o mesmo que responder se o tempo é uno ou múltiplo. Mas a questão não é nada simples, uma vez que Bergson parece afirmar as duas coisas. Por um lado, existem várias durações; todo ser vivo tem uma duração particular, que pertence somente a ele e que é sua própria essência. 176 Mas, por outro lado, Bergson defende a tese de que o tempo é uno, universal e impessoal. 177 Na verdade, este foi sempre um tema recorrente em Bergson, tendo ele lhe dado diferentes soluções ao longo de sua obra. Nada, no entanto, que pudesse cclocar em risco a "coerência" interna de sua filosofia. Mas, se num primeiro momento Bergson cogitou a hipótese de um tenpo múltiplo – 112 algo como um conjunto infinito de durações que coexistem sem, no entanto, formarem um todo, uma unidade –, em um segundo momento, o tempo é pensado como a Duração em si – para onde todas as durações individuais convergem. Neste sentido, as durações seriam as próprias linhas do tempo (que, por essência, é uno, ainda que comporte uma multiplicidade de linhas convergentes). Como Deleuze mesmo afirma, ( ... ) não existe senão um único tempo (monismo), embora ele tenha uma infinidade de fluxos atuais (pluralismo generalizado), que participam necessariamente do mesmo todo virtual (pluralismo ). 178 Mas falar em fluxos atuais (as durações) ou em um todo virtual (o tempo em si) não esclarece a natureza da duração. O que é um fluxo atual? Como podemos definir a duração? Como sabemos, Bergson não opera com uma única "descrição" do que seja a duração. Em O pensamento e o movente, por exemplo, ele aborda a questão da seguinte maneira: duração é memória. E memória é consciência. A duração é, pois, o "élan vital" que faz com que o ado de um ser vivo se prolongue em seu presente – sendo o presente apenas o momento mais contraído dessa memória. De certo modo, parece que a duração pode ser descrita basicamente como "experiência psicológica". É assim que ela é definida em Os dados imediatos e nas primeiras páginas de A evolução criadora. Trata-se de um devir que dura, ou melhor dizendo, de uma mudança que é a própria essência do ser. Na realidade, a duração é primeiramente sucessão, daí por que ela implica um movimento contínuo e indivisível. Segundo Bergson, "é justamente esta continuidade indivisível de mudança que constitui a duração verdadeira",179 ou seja, não existe duração fragmentada nem duração sem alterações, mudanças de estado. Uma duração que deixa de correr é uma duração que deixa de existir (daí a idéia de continuidade) e 113 uma duração sem mudanças de estado não é duração. É por isso que a mudança, em Bergson, não é uma das categorias do vivo, ela é a própria essência dele. Está bem claro, para nós, que Bergson não encontra qualquer dificuldade em conciliar o múltiplo e o uno na duração (referimo-nos à continuidade de uma mesma essência a despeito de suas infinitas mudanças de estado). Assim como o tempo é uno mas abarca uma multiplicidade infinita de durações individuais, também a duração de um ser permanece a mesma apesar dos múltiplos estados que experimenta. Uma observação apenas: é preciso relativizar os termos aqui empregados. Quando dizemos que a duração permanece a mesma, não estamos querendo dizer que os sucessivos estados que ela experimenta não a modifiquem. Bergson, ao contrário de Heráclito, acredita que as mudanças que ocorrem em um rio (a renovação de suas águas, a mistura com outros elementos etc.) não excluem a existência do rio na sua essência, no seu fluir constante. O ser existe e é puro movimento contínuo. Na realidade, a questão é bem sutil. É verdade que mudamos sem cessar; que existe uma infinidade de estados
que experimentamos. Não obstante, enquanto os experimentamos, eles formam um bloco tão sólido, tão organizado, que é impossível apontar onde se inicia e onde termina uma determinada sensação ou sentimento. Aí está a natureza mais profunda da duração: ser continuidade, sucessão, estados que se prolongam uns nos outros; enfim, multiplicidade e unidade ao mesmo tempo. "Eu mudo, portanto, sem cessar", afirma Bergson. Sensações, sentimentos, volições, representações: não há um só estado que deixe de variar enquanto "duramos". Mas mudança e continuidade, em um mesmo fluir, não se incompatibilizam no bergsonismo. Não há qualquer incoerência quando encontramos, na obra de Bergson, a idéia de que não existe uma única representação, sensação ou sentimento que não se modifique a todo instante e que cada nova aquisição, cada nova volição ou sensação 114
transforma no conjunto a nossa "memória" ou "duração': A duração se transforma, mas jamais deixa de ser ela própria. Diferença e identidade. De fato, a cada nova aquisição (chamamos de aquisição uma nova experiência, sentimento ou volição), a nossa vida interior é enriquecida. Nosso ado cresce e se conserva, enquanto nosso presente não a de um breve instante, a ponta de um grande iceberg. "Meu estado de alma, avançando na rota do tempo, se enche continuamente com a duração que ele recolhe; ele faz, por assim dizer, uma bola de neve consigo mesmo."180 Carregamos atrás de nós um ado que não cessa de crescer. Para Bergson, uma intuição mais perfeita do que aquela que temos de nós mesmos, de nossa própria duração. Qualquer pessoa, filósofo ou não, experimenta a sensação de seu próprio escoamento no tempo. Mas quando tentamos apreender a essência de outros seres, é inevitável a confusão entre duração e espaço, ou melhor, entre o que é da esfera do tempo e o que é da esfera do espaço. Daí por que, remetendo ao que anteriormente falamos (quando tratamos das regras do método bergsonista), será preciso decompor o misto – que nos é fornecido pela própria experiência sensível. Afinal, tudo que apreendemos ocupa, necessariamente, um espaço. Para Bergson, ainda que isso seja indubitável, a verdade é que o espaço é algo que "desnatura" a duração, ou seja, essa "mistura impura" impede-nos de apreender a duração em si. Não é sem motivo que Bergson afirma que a intuição da duração pura exige um ultraamento da própria experiência. "A duração pura nos apresenta uma sucessão puramente interna, sem exterioridade; o espaço, uma exterioridade sem sucessão ... Entre os dois se produz uma mistura."181 No entanto, o que é ainda mais importante do que a própria dissolução dos mistos é a constatação da existência de duas formas de "multiplicidade" no próprio vivo. Uma delas (que nós já conhecemos bastante) é a multiplicidade interna, de su115
cessão, virtual e contínua. A outra, relacionada ao espaço, é uma multiplicidade de exterioridade, atual, numérica e descontínua. A primeira, é claro, é da ordem do tempo; a segunda está associada ao espaço; a primeira pode ser definida como multiplicidade qualitativa, a segunda como multiplicidade quantitativa.182 No interior desta última só pode haver diferenças de grau; no interior da primeira, a distinção é de natureza. Daí por que cada duração é única e insubstituível. Mas a mistura impede-nos de observar essas distinções, a começar pela própria diferença de natureza entre espaço e tempo. Chegamos mesmo a confundir a "mobilidade em si" com o espaço percorrido, esquecendo que a mobilidade é o próprio ato de "tensão e extensão" de um móvel. É como um elástico, infinitamente contraído em um ponto matemático, que progressivamente é estendido sem deixar de ser indivisível. Em outras palavras, confundir a mobilidade com o espaço percorrido é espacializar o tempo (a duração); é tomar a mobilidade segundo os pontos pelos quais o móvel ou, dividindo o movimento em paradas sucessivas. Jamais, como vimos, poderemos recompor a própria mobilidade em si, partindo desses pontos arbitrários e abstratos. Lembremos, para terminar, que Bergson trabalha com uma série de imagens, sem qualquer pretensão de dar conta integralmente da "duração". Aliás, o valor delas está exatamente nisso: elas não são "representações" do movimento, são apenas exemplos que podem nos levar a transcender a própria representação.
3. Nietzsche e o eterno retorno
Existe uma frase de Nietzsche que parece resumir adequadamente toda a sua filosofia: "Se, em tudo aquilo que tu queres fazer, tu começas por te perguntar: é seguro que eu queira fazê-lo um número infinito de vezes, este será para ti o centro de gravidade mais sólido".183 Uma frase que se converte, segundo Deleuze, em uma verdadeira "regra prática da vontade": tudo o 116
que tu quiseres, queira-o de tal maneira que queiras também o seu eterno retorno: eis o fim do "meio-querer': o fim da vida fraca. Em outras palavras, é preciso que o "querer" se converta em uma vontade poderosa, capaz de sempre fazer retomar aquilo que se quer. É impensável a produção de novos valores e de uma nova existência sem esse "querer': sem esse "sim" que faz tudo retomar ... Mas não nos enganemos: essa regra prática não é nada simples. Não se trata de um simples querer, tal como: "Eu quero afirmar a minha existência': Esse "querer" é já um efeito da afirmação, e é ao mesmo tempo a própria afirmação. Afirmar não é outra coisa senão querer o próprio retorno da coisa afirmada. Por isso, afirmar a existência é querer primeiramente que ela sempre retome, é amá-la de tal modo que ela seja desejada de maneira irrestrita e incondicional. Tudo o "que foi" é fragmento, um enigma e um horrendo acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito: "Mas assim eu o quis!': Até que a vontade criadora diga a seu propósito: Mas assim eu o quis! Assim hei de querê-lo! 184 Muito bem: como uma regra para a vontade, a doutrina do eterno retorno não chega a causar uma grande estranheza. Devemos "querer" de tal maneira uma coisa que devemos desejá-la para sempre ou, melhor dizendo, não devemos "querer" alguma coisa se não a desejamos por toda a eternidade. De fato, uma nova ética é fundada a partir disso. É, como dissemos, o fim do querer fraco e impotente. Porém, a questão se complica quando Nietzsche fala de um retorno do idêntico, das coisas tais como elas são. É assim, pelo menos, que os animais de Zaratustra resumem o que eles pensam ser a doutrina do eterno retorno: "Nós sabemos o que ensinas: que eternamente retornam todas as coisas e nós mesmos com elas", 185 É claro que sabemos que estamos diante de um tema bastante complexo, algo que o próprio Nietzsche não teve tempo de desenvolver, uma vez que a doença interrompeu bruscamente os seus estudos117 sobretudo, os que diziam respeito a essa concepção (e que foram posteriormente reunidos na polêmica coletânea Vontade de potência). Mas como pensar, na obra nietzschiana, a idéia do retorno como repetição idêntica do mundo e das coisas? E vejam que não se trata sequer de um retorno do semelhante, mas das próprias coisas, tais como elas são ... Como entender que Nietzsche pudesse conferir esse sentido à repetição sem, com isso, neg,ar todo o conjunto de sua filosofia – cuja coerência e rigor são inquestionáveis (sobretudo quando se trata de negar qualquer finalidade superior ao mundo e à vida ou de negar as identidades prévias e permanentes)? Ora, se a hipótese nietzschiam. de um tempo cíclico – por oposição ao tempo linear das teses criacionistas – significasse uma absoluta imposição do dado real, como algo que se deu e se dará sempre da mesma maneira, estaríamos prisioneiros de um destino inescapável. Dessa maneira, a doutrina do eterno retorno traria consigo uma espécie de "conformismo", de aceitação iva de uma realidade predeterminada. A própria impossibilidade de emergência do super-homem já estaria, para todo sempre, decretada – uma vez que repetiríamos as mesmas coisas ad ínfinítum. A sua inexistência seria, portanto, um fato irreversível. E toda crítica nietzschiana (ao homem e aos seus valores) perderia o seu sen tido – já que seria impossível mudar o que já está previamente determinado. Como diz o próprio Nietzsche, "se tudo está determinado, como posso dispor de meus atos?".186 É claro que Nietzsche sempre se mostrou um austero opositor da tese cristã do livre-arbítrio. Sabemos que, para ele, o homem não é essencialmente livre, Primeiro, porque ele é prisioneiro de suas necessidades; segundo, porque ele é prisioneiro de seus próprios valores. Mas daí a dizer que o eterno retorno significa que tudo está plenamente determinado e que tudo retorna infinitamente (tomando isso, sobretudo, num sentido moral), é o mesmo que negar a possibilidade de o homem romper 118
com as suas prisões, é o mesmo que negar (O que o próprio Nietzsche anunciou na primeira parte do Zaratustra) as três metamorfoses do espírito.18? Mas, para que nossas palavras ganhem algum sentido, precisamos buscar no interior da própria obra nietzschiana uma justificativa que corrobore a idéia que temos de que mesmo que a repetição trouxesse o "mesmo" mundo de volta, não há por que supor a existência de um des tino, no sentido religioso do termo. Em um certo aspecto, esse retorno sequer nos diz respeito diretamente – pelo menos, não no sentido de afetar diretamente as nossas vidas. Estritamente falando, a idéia do eterno retorno foi melhor esboçada no Zaratustra (embora, antes disso, ela tenha aparecido em dois aforismos, a saber, o 342 da Gaia Ciência e o de número 56 de Para além do bem e do mal). De qualquer forma, será mesmo na Vontade de potência que Nietzsche fará importantes revelações. Segundo o próprio autor, foi a intuição do eterno retorno que o levou a escrever o Zaratustra. Para sermos precisos, a concepção fundamental da obra – ou seja, a idéia de que tudo retoma inexoravelmente – data de agosto de 1881, mas a publicação do texto, na sua íntegra, deu-se apenas entre os anos de 1884 e 1886. Para Nietzsche (e é importante salientarmos isto), a idéia do eterno retorno pressupõe e complementa a de super-homem. Afinal, só um novo "homem" pode realmente afirmar a existência em todas as suas formas, em vez de ultrajá-la em nome de valores superiores e metafísicos. Para o filósofo alemão, a história do homem é a história de um desprezo: do desprezo pelo corpo e por tudo aquilo que está na ordem do tempo. Despreza-se o mundo visível, a vida terrena, em prol de uma existência póstuma. Tende-se a desvalorizar a vida por sua brevidade e instantaneidade, a desqualificá-la em favor de uma outra vida mais perene, a fazer dela um fardo por demais pesado. Atitude do homem rancoroso, da alma ressentida com as suas próprias limitações. "Que o tempo não retroceda, é o que a enraivece; 'aquilo que foi' – é o nome 119
da pedra que ela não pode rolar."188 Já o super-homem, ao contrário do homem ressentido, representa o ultraamento desses sentimentos mesquinhos, representa o "sentido da terra", o amor mais profundo à existência, representa o fim do niilismo. Mas o niilismo é a "doença" do homem. E essa doença tem variadas formas de manifestações. É preciso ter um olhar acurado para perceber as suas diferentes nuanças. Segundo Deleuze, o niilismo189 deve ser compreendid0 de três maneiras, ou melhor, existem basicamente três formas de niilismo: a primeira delas é o que poderíamos chamar de niilismo negativo, típico do mundo judaicocristão (sendo o ressentimento e a má-consciência os dois signos ou sintomas de tal niilismo). O ressentido é, por assim dizer, o acusador perpétuo ("a culpa é sua"), é o homem que busca fora de si as razões de suas dores. O ressentimento é melhor representado pelo mundo judaico. O cristão, ao contrário, é aquele que inverte a direção do ressentimento. 190 Ele introjeta a culpa e multiplica as suas dores ("é preciso sofrer para expiar os meus pecados"). O ressentimento converte-se em má-consciência no cristianismo. O "amor à vida" do cristão é o amor à vida fraca, mutilada. Na verdade, ambos pertencem ao mundo dos ideais ascéticos, ambos negam a existência – já que a consideram injusta e aterrorizante. Vivem assim em função de um mundo que está para além de sua percepção e de sua existência. Nesse caso, niilismo não significa destruição, mas conservação de uma vida reativa, de uma vida fraca. A outra forma de niilismo chama-se reativa. Nesta, os homens se cansaram desse mundo metafísico e terminaram por "matar Deus". Mas o fizeram como resultado de seu próprio ódio e limitação: O homem reativo não a mais nenhuma testemunha, quer estar sozinho com seu triunfo e apenas com suas
forças. "Coloca-se no lugar de Deus" ... O ressentimento torna120
se assim ateu, mas esse ateísmo é ainda ressentimento, sempre ressentimento, sempre má-consciência...191 Também para eles, a vida não tem valor. Eles estão sozinhos no universo. Mas, que não se confunda a destruição ativa de todos os valores "superiores" com essa destruição reativa. Foi o homem reativo que matou Deus e ele está muito longe de ser o super-homem, muito longe de ser um criador. O seu "não" é reativo. Mas o niilismo atinge uma forma ainda mais refinada: a que chamamos de niilismo ivo (e que equivale à consciência budista). Aqui, encontra-se o homem que quer o seu próprio declínio. Nietzsche coloca Cristo nessa
última forma do niilismo. Para Nietzsche, Cristo traz uma alegre mensagem, sem ressentimentos nem rancores, ao rejeitar todo tipo de guerra e ao pregar a aceitação da morte. Cristo está longe de ser o que Paulo e João fizeram dele – ainda que tenha sido essa imagem a que predominou no cristianismo. Para Nietzsche, Cristo seria uma espécie de Buda. E o niilismo ivo seria essa forma de autodestruição desejada. É neste sentido que Deleuze afirma que é no próprio desenvolvimento do niilismo que encontramos a Sua superação. É quando o niilismo leva finalmente a cabo a Sua própria destruição. Uma espécie de forma ativa do niilismo. Enfim, o super-homem está a caminho – afirma Zaratustra, nas últimas páginas do livro. Ele virá para afirmar o que o homem sempre negou, ele virá para ensinar o "sentido da terra': o amor incondicional à existência. Afirmar a existência, como dissemos no início, é querer o seu eterno retorno – é isso que anuncia o superhomem. Mas querer o seu retorno absoluto significa também desejar a volta do homem mesquinho, do homem pequeno? Em certas afirmações fica claro que existe um princípio seletivo no eterno retorno: "o pensamento do Retorno como princípio de seleção a serviço da força" – é o que prega Nietzsche. 192 Mas, em outro 121 momento, ele mostra o nojo que Zaratustra sente ao supor o retorno do mais vil e também dos homens superiores: ( ... ) eternamente retoma o homem de que estás cansado, o pequeno homem – assim bocejava a minha tristeza, arrastando da perna e sem poder adormecer (....) Ah, nojo! Nojo! Nojo!193 Como ar a idéia de um retorno absoluto e inescapável? Não haveria então saída para o niilismo? Estaríamos todos fadados a uma repetição infinita? Então, para que serve uma "vontade" poderosa? Para que serve uma "regra prática da vontade" se 'nosso querer nada determina? E o que Nietzsche quer dizer ao afirmar que o sábio, "sendo o homem mais feliz, o mais poderoso, justifica todo o devir e quer o retorno dele"?194 Como poderia Nietzsche afirmar o devir e o idêntico ao mesmo tempo? Como pode ele negar todo tipo de identidade primeira ao afirmar que "nunca uma folha é inteiramente igual a outra" 195 e depois supor que tudo retome de modo idêntico? E o que quer dizer Nietzsche quando afirma que no fundo, todo homem sabe que está no mundo a título de "unicum" e que nem o mais estranho dos acasos poderá combinar de novo uma multiplicidade tão bizarra? 196 Será que tal afirmação já não indica que é preciso ter cautela para entender o sentido exato do eterno retorno? Acreditamos que sim, mas é preciso ler nas entrelinhas e é também preciso não desprezar o conjunto de uma filosofia que sempre lutou contra as ilusões da identidade e do mesmo. E, afinal, não é o próprio Nietzsche quem defende a plenitude do "querer': de um "querer" tão poderoso que possa afirmar de uma vez por todas a existência? E no que tange à repetição do mundo físico, esta não estaria restrita ao que ele chama de "lance de dados", onde todas as combinações possíveis foram estabelecidas ao acaso numa única e derradeira vez? Vejam que não estam os falando de um acaso que repete sempre as mesmas combinações, mas de um acaso que combinou de uma 122
vez por todas (e numa única vez apenas) todas as combinações existentes. Outrora se pensava que a atividade infinita no tempo requer uma força infinita, que nenhum consumo esgotaria. Agora pensa-se a força constantemente igual, e ela não precisa mais tornarse infinitamente grande. Ela é eternamente ativa, mas não pode criar infinitos casos, tem de se repetir: essa é a minha conclusão.197 Entender o eterno retorno com relação ao tempo e à matéria, com relação às forças que engendram os seres, não é exatamente dar a ele uma dimensão religiosa e mítica (como se costuma entender a idéia de um retorno de todas as coisas). Nietzsche procura sempre excluir a idéia de finalidade desse retorno; não há qualquer razão superior para tal repetição. A repetição se dá no jogo das forças e do devir que, ao acaso, produziu mundos que poderão vir a se repetir - supondo, talvez, que a matéria seja finita. Mas, se tal evento não indica que meus atos já estão determinados, que minha vida toda é apenas uma cópia de uma cópia - já que também não há um início nem um fiml98 -, fica mais fácil compreender o sentido que devemos dar ao fato de que o melhor centro de gravidade para a vontade deve ser a idéia da repetição. Porque uma vez que escolhemos alguma coisa, uma vez que algo se dê
na ordem do tempo, não há como modificá-lo. O que foi, o que é, é para sempre! "Que o tempo não possa voltar atrás, eis a sua cólera" - não são estas palavras do próprio Nietzsche? Uma vida de arrependimentos é uma vida fraca e reativa; somente os que respondem "sim, eu repetiria tudo outra vez" teriam feito a vida valer a pena e a teriam afirmado de modo ir. Somente para esses não seria um fardo supor a Sua repetição infinita! Na verdade, desde o início, Nietzsche já esboça a idéia de que é possível afirmar incondicionalmente a existência, apesar de seu caráter problemático. Em seu livro A origem da tragédia, 123 Nietzsche chama atenção para o fato de que os gregos superaram o seu pessimismo perante a vida quando produziram a tragédia. A arte trágica é uma resposta ao pessimismo grego, 199 é uma justificativa estética para a vida, é um remédio milagroso para curar a ferida da existência. 20o Mesmo que haja nesta afirmação algo de profundamente schopenhauriano, é a afirmação mais absoluta da existência e do supremo risco de vivêIa em todas as suas possibilidades e impossibilidades que já se manifesta aqui. Nietzsche aponta a arte como o único remédio que nos permite vencer definitivamente o niilismo e afirmar as coisas tais como elas são. Em poucas palavras, afirmar a finitude e a mudança como a essência do nosso próprio existir. É pela arte que o homem se cura e se torna, ele próprio, um criador. O próprio homem dionisíaco,
sem a arte que lhe impulsiona, tenderia a cair na letargia - não por sua profunda reflexão das coisas, mas porque uma vez que ele viu a essência das coisas, repugnou-lhe agir. 201 Assim como Hamlet, ele sabe que sua ação não pode alterar a essência do que é, de modo que o conhecimento é a morte da ação. Pois bem, foi nesse momento perigoso para a vontade grega que se aproximou essa "feiticeira salvadora" chamada arte.202 Se ela também é uma ilusão que nos faz viver, se também é uma mentira (tal como a religião, a moral e a metafísica), é preciso escolher dentre as ilusões aquelas que nos fazem mais fortes, que nos fazem crer na vida a ponto de afirmá-Ia e amá-Ia sob todas as circuns tâncias.203 E somente a arte parece nos oferecer tal poder. Há somente um mundo, e este é falso, cruel, contraditório, enganoso, sem sentido ( ... ). Um tal mundo é o mundo verdadeiro. Precisamos da mentira para triunfar sobre essa realidade ( ... ). "A vida deve infundir confiança": o problema assim colocado é descomunal. Para resolvê-Io, o homem tem de ser mentiroso já por natureza, precisa, mais do que qualquer outra coisa, ser artista. 204
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É verdade que o próprio Nietzsche reconheceu, em 1888, que o seu livro sobre a tragédia também
era um tanto niilista, mas em uma perspectiva mais profunda (que corresponde ao momento em que a falta de um sentido superior não provoca mais rancor e ressentimento), quando "no símbolo dionisíaco é alcançado o extremo limite da afirmação".205 Vejam que a idéia de afirmação da existência está presente em toda a obra nietzschiana; resta-nos apenas compreender um pouco mais em que medida ela está ligada ao eterno retorno. Vejamos: é claro que não podemos mudar aquilo que existe independentemente de nossa vontade (a vida, a morte, o aniquilamento inexorável de todo ser), mas sabemos, por outro lado, que o nosso poder consiste em afirmar e produzir uma existência que valha por si mesma. Temos esse poder, embora isso nos pareça muito distante, já que nos tornamos escravos dos próprios valores que criamos. Afinal, são esses mesmos valores que nos impedem de agir e de modificar (dentro do que é possível) a nossa própria existência. E aqui não se trata de uma imobilidade por se ter visto demais, mas por se ter visto pouco. Aqui, é o medo de ver que nos paralisa: o medo da morte, o medo das mudanças, o medo de uma falta de finalidade para todas as coisas; o medo de ter de agir, em outras palavras, de ter de viver. É sempre melhor que façam por nós, é sempre melhor que nos digam o caminho certo, é sempre melhor ter um pastor que nos guie ... Mas, para afirmar a existência, é preciso criar novos valores, é preciso tor nar-se um artista, um esteta da própria vida, é preciso romper com os grilhões, as ilusões e as mentiras enfraquecedoras. É por essa razão que sabemos, mesmo que seja intuitivamente - já que o próprio Nietzsche não pôde
infelizmente esclarecer para nós todas as dúvidas que emergiriam dessa "doutrina" -, que o eterno retorno não pode representar uma paralisação de nossos atos, que ele não pode representar um 125 pessimismo ou um niilismo negativo. Se o retorno se impõe como um "jogo" entre os deuses e o acaso, se ele se impõe a todos os seres sem que possamos resistir, é porque em uma certa medida ele não noS diz respeito diretamente. Mas sua idéia, sua "descoberta", modifica intimamente as coisas; modifica intimamente o nosso "espírito". Mas é claro que algo ainda nos soa estranho: quando tomamo o conjunto da filosofia nietzschiana, observamos que ele sempre combateu as idéias de identidade e de mesmo. Quando definiu a tragédia, por exemplo, procurou mostrar a relação íntima que existia entre ela e a afirmação do devir, isto é, entendeu a arte trágica como uma justificativa estética para a existência, como uma afirmação do múltiplo e do acaso. Nietzsche jamais se curvou à idéia de um modelo ou de um ser em si. Não existem seres em si, seres que estão para além de sua forma temporal. Os seres estão no tempo e não sobrevivem a ele. Além do mais, cada ser é único e insubstituível. Não há um só ser que seja idêntico a outro (ou, como o próprio Deleuze afirma, duas séries jamais se repetem de modo idêntico ).206 Não existe a identidade - como modelo para as coisas. Toda identidade é precária e provisória. Em verdade, é uma bênção e não uma maldição ensinar: Acima de todas as coisas encontrase o céu acaso, o céu inocência, o céu mais ou menos, o céu temeridade". Por acaso - eis aí a mais antiga nobreza do mundo, eu a devolvi a todas as coisas, e as libertei da servidão à finalidade.207 Para Nietzsche, as idéias de mesmo e de semelhante são forjadas por uma razão que precisa tomar o diferente pelo igual ou similar. Como vimos, o conhecimento representativo depende disso. Mas o que existe de fato é um verdadeiro abismo entre os seres. É por isso que Zaratustra afirma que "toda alma tem o seu mundo, diferente dos outros; para toda alma, qual126
quer outra alma é um transmundo". 208 É por isso também que, para Zaratustra, as palavras e os sons são como arco-íris e falsas pontes entre coisas eternamente separadas. 209 Portanto, ainda que o retorno fosse uma repetição absoluta do "todo", esse "todo" encontra-se assentado na diferença e na diversidade (ainda que, em Deleuze, a idéia de "retorno da diferença" não tenha este sentido). Para Deleuze, e tendemos a concordar com ele, o retorno nietzschiano, do ponto de vista cosmológico, 2lO diz respeito às forças que engendram os seres (e não aos seres em 'si). Trata-se de um retorno da matéria, um retorno do caos, isto é, dos elementos que constituem todas as coisas; afinal, Nietzsche jamais se rendeu à idéia mística de um retorno da consciência ou do "eu pessoal", jamais itiu pensar que esse retorno tivesse qualquer finalidade senão a de sua própria necessidade material. Mas é claro que ele deixou de explicar muitas coisas. Nem sabemos bem se Nietzsche manteria essa posição diante dos novos problemas que se apresentariam. Mas realmente não nos parece nada equivocado falar do eterno retorno como retorno da diferença - uma vez que é a diferença, e não a identidade, o princípio de toda a Natureza. Todo retorno repete o "mesmo" mundo de diferenças, o "mesmo" mundo de simulacros; é a eterna volta daquilo que não tem princípio nem fim; é a eterna repetição sem finalidade. É a eterna volta da diferença pura ... Vejam que Deleuze não quis desfigurar a doutrina do eterno retorno; ele quis, isto sim, torná-Ia compatível com todos os ensinamentos anteriores de Nietzsche. Por um lado, é bem verdade que esse retorno não corrobora, de modo algum, as teses que defendem um princípio de identidade para todos os seres. Nietzsche pensa exatamente o contrário: a diferença está no cem e do ser. Cada combinação é única. Sim, Nietzsche fala em retorno do mesmo, só que esse mesmo não é nem um princípio nem um modelo. Como diz Deleuze, o único mesmo do eterno retorno é o fato de que 127 tudo sempre se repete, mas sempre tudo é novo e diferente.2l1 Mas vejamos o que tem a nos dizer o próprio Nietzsche: E sabeis sequer o que é para mim o "mundo"? Devo mostrá-Io a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme brônzea grandeza da força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de "nada" como seu limite ( ... ) Aquilo que eternamente tem de retomar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço -: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamentedestruir-se-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu "para além do bem e do mal" ... quereis um nome para esse mundo?.. Esse mundo é a vontade de potência. 212
III. A diferença pura: "conceito" e "ontologia" o pensamento é como o Vampiro, ele não tem imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia. GILLES DELEUZE
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Conceitos e planos de imanência: a criação filosófica Sabemos que é o próprio Deleuze quem confere à filosofia o direito e o poder exclusivos de criar os conceitos. Em O que é a filosofia?, Deleuze e Félix Guattari não deixam margem para dúvida: a filosofia não é uma simples arte de inventar, de produzir os conceitos, ela é uma disciplina rigorosa, que tem como função primordial a criação de novos conceitos. "Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a daqueles que os criam."l Ora, o conceito de diferença pura é uma criação autenticamente deleuziana. Mas cabe a nós agora discutir o que significa exatamente criar um conceito. Significa, por acaso, que Deleuze criou tal conceito do nada (uma espécie de "criacionismo filosófico") ou que o elaborou sem qualquer pretensão on-
tológica, sem qualquer preocupação em recobrir algo existente, real? Nem uma coisa nem outra. Deleuze, de fato, criou um novo conceito, mas isso não exclui o fato de que determinados elementos já estivessem presentes antes mesmo de sua criação. E, quanto ao aspecto ontológico, é preciso que fique bem claro que "todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido". 2 Mas isso também não quer dizer que um conceito tenha um referencial, que ele tenha a função de recobrir um objeto concreto, palpável (pelo menos, não no sentido convencional). Mas comecemos pela primeira questão: o que significa dizer que determinados elementos já estavam presentes antes da 132
criação de um conceito? Um filósofo que "assina" um conceito não é o seu criador legítimo? É claro que sim; mas, como Deleuze e Guattari afirmam, um conceito não é criado do nada, isto é, "cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes".3 É por isso que nada saberemos de um conceito se não reconstituirmos a sua trajetória ou, melhor dizendo, o seu processo de criação. Para começar, toda criação pressupõe um plano, um solo que não se confunde com aquilo que é criado nele. Mas também o solo precisa ser preparado, precisa ser "traçado" para o cultivo. "Traçar um plano e criar conceitos" são, segundo Deleuze, as duas grandes características de uma filosofia construtivista. Mas, se é verdade que cada filósofo tem seu pró prio plano de imanência, não é menos verdade que um conceito sempre remete a outros e que um plano supõe sempre outro plano. Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou retalhado. 4 Na verdade, todo conceito é, em si, complexo. Isso quer dizer que todo conceito possui componentes que terminam por se tornar inseparáveis dele. O "cogito cartesiano", por exemplo, tem três componentes: duvidar, pensar e ser. Cada um desses componentes existe separadamente do conceito cartesiano, mas o conceito de "cogito" não existe sem essa conjugação. Não há, definitivamente, conceitos simples. Todo conceito tem componentes e é definido por eles. Por isso, um conceito não é uma proposição designativa - uma vez que ele não deve ser medido tanto pelo seu grau de referência, mas pelos componentes que o integram. Daí por que perguntar se um conceito recobre algo no real é atribuir ao conceito um papel pouco ori133 ginal e muito menor do que o que ele tem. Os conceitos são criados, segundo Deleuze e Guattari, a partir dos problemas que um filósofo se coloca. Os conceitos ou Idéias, como instâncias problemáticas e problematizantes, evidentemente apontam para os objetos, mas é preciso ter o cuidado de observar que eles se organizam sobre linhas que convergem para um foco ideal que se situa fora da própria experiência. Isso quer dizer, em suma, que ainda que as Idéias tenham um valor objetivo, ou seja, ainda que elas tenham um objeto, tal relação não deve ser entendida no sentido clássico de uma idéia que recobre um objeto sensível. Em Deleuze, é o problema como problema que é o objeto real da Idéia. 5 Além do mais, um problema aponta sempre para outros problemas, bem como os conceitos apontam sempre para outros conceitos. O interesse, portanto, que demonstramos por outros filósofos (especialmente no capítulo n) deve ser entendido de duas maneiras: primeiro, pelos problemas colocados por eles - problemas que, de um modo ou de outro, foram também colocados por Deleuze (nesse caso específico, a questão da diferença); segundo, porque certos componentes que constituem o conceito deleuziano de diferença pura encontram-se presentes nos filósofos que enfatizamos. Não se trata, entretanto, de buscar as "influências" de um filósofo sobre outro. Isso banaliza o pensamento e a criação filosófica. Nossa intenção (inspirada na própria filosofia de Deleuze) é mostrar como os conceitos remetem uns aos outros e como eles podem ser reativados constantemente em outros planos.6 É por isso que em nenhum mo-
mento pretendemos encontrar, entre os filósofos analisados, um termo semelhante ao que Deleuze criou. Nossa digressão tem como objetivo primordial apontar onde e como a diferença apareceu como um problema fundamental e também reconstituir, em termos genealógicos, o aparecimento de elementos que, por SUa vez, integrarão o conceito deleuziano. 134
Ressaltamos, todavia, que tomamos de empréstimo a própria definição deleuziana acerca da filosofia: ''A filosofia é devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de sistemas':7 Isso impede de um modo bastante direto a idéia de progresso em filosofia - a não ser que se entenda por este termo a constante superposição de planos, que "não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica".8 Eis, segundo pensamos, uma bela maneira de impedir que idéias tais como a de que "algo está superado" ou que "tal coisa é ultraada" tenham pouco efeito na filosofia. Aliás, se há uma coisa que Deleuze trouxe para a filosofia, foi exatamente esse seu poder de neutralizar as banalidades, um vigor para fazer calar os que insistem em colocar a filosofia no mesmo plano que os outros saberes. Para Deleuze, a filosofia tem seu próprio devir dentro da história, onde os conceitos - ainda que sejam criados - parecem encontrar uma maneira particular de sobreviver ao tempo. É por isso que se pode dizer que, apesar de criados, os conceitos não são "temporais". Eles não são criados para dar conta de um contexto sócio-histórico, não são apenas o produto de seu tempo (ainda que sejam influenciados por ele). Enfim, os conceitos não desaparecem quando um novo contexto histórico emerge; eles parecem estar bem "ali", ao alcance de todos, basta apenas acioná-Ios, reativáIos mais uma vez. De certa forma, eles permanecem vivos, independentes de seus criadores. Ora, apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos têm sua maneira de não morrer, e todavia são submetidos a exigências de renovação, de substituição, de mutação, que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas.9 Um conceito, portanto, é sempre um composto, uma conjugação de elementos e forças (para usar um termo nietzschiano). Vemos assim como Deleuze aproxima-se de Nietzsche ao supor 135 uma filosofia construtivista: ora de forma implícita, ora explicitamente, Deleuze reage às definições de filosofia que sugerem que ela tem uma outra tarefa, que não a de criação dos conceitos. Na verdade, todas as outras funções comumente atribuídas à filosofia (contemplar, refletir ou comunicar) em nada se comparam à atividade criativa. Além disso, ainda que algum filósofo dedique-se à reflexão ou à contemplação, seria preciso que ele antes criasse o seu próprio aparato conceitual. Ou então, su põese que um filósofo deva fazer valer conceitos que não são seus - o que é o mesmo que dizer que um outro os criou ou, o que é pior, que os conceitos são eternos, atemporais. Mas, uma vez que Deleuze e Guattari são bastante objetivos em afirmarem que todo filósofo é um criador de conceitos, não há por que discutir mais a existência ou não de conceitos eter nos em sua filosofia - a não ser que se tome a questão de um outro ponto de vista: de um certo modo, ao ser criado, um conceito ganha uma espécie de "movimento próprio", ele parece existir por si, mesmo na ausência de seu criador. Isso se aproxima muito da criação artística, em que uma obra de arte sobrevive ao seu próprio autor. E assim como a obra de arte ganha uma existência autônoma, também os conceitos sobrevivem ao seu tempo. Criados, porém eternos. Um verdadeiro transcendental no seio da mais profunda forma de imanência.lO Como fica, porém, a questão da criação propriamente dita? Como pode cada filósofo criar os seus próprios conceitos e, ao mesmo tempo, estabelecer conexões com conceitos provenientes de outros planos? O que significa exatamente "reativar" um conceito? De um certo modo, a questão da reativação de um conceito não parece ser um problema quando é o pró prio Deleuze quem afirma que ele é sempre um composto, um consolidado de linhas e curvas que, na verdade, mantém conexões com outros conceitos, em outros planos. Além disso, também sabemos que
um conceito não é criado do nada, daí por que ele sempre remete a conceitos anteriores (não é o pró136
prio Deleuze quem afirma que um conceito contém, em muitos casos, pedaços ou componentes de outros conceitos?). Mas, quanto à idéia de "plano de imanência", ela parece confundirse, por vezes, com a idéia de "imagem do pensamento': Neste sentido, podemos nos perguntar se não há, de fato, uma rela ção imediata entre os diversos filósofos de uma mesma época ou de uma mesma corrente de pensamento. A resposta é sim e não! É evidente que alguns problemas são colocados um pouco à revelia do filósofo (problemas que, como dissemos, influenciam a criação filosófica, ainda que não acondicionem). Podese também dizer que determinados "pressupostos implícitos" estão presentes mesmo em filósofos de épocas distintas, ou seja, que diversos filósofos partilham uma "mesma imagem do pensamento". Mas a verdade é que isso jamais impediu que cada filósofo criasse os seus próprios conceitos e que estes, por sua vez, "rivalizassem" entre si. O que quer dizer que existem tantos "planos de imanência" quantas são as filosofias. Além do que, um mesmo filósofo pode, ele próprio, compor mais de um plano de imanência. Pois bem, até aqui lidamos com a idéia deleuziana de que todo filósofo é, em primeira instância, um "criador". Tal é a posição de Deleuze e Guattari em O que é a filosofia? Mas determinadas questões que aparecem em Diferença e repetição tornam problemática essa relação entre filosofia e criação. Afinal, como vimos no capítulo I, Deleuze parece estabelecer uma diferença clara entre o filósofo e o pensador ou, mais especificamente, entre "filósofos nômades" e "filósofos sedentários". Uma distinção de natureza, que está diretamente vinculada à idéia de que o nômade é sempre um criador, enquanto que o sedentário teria feito do pensamento apenas uma ferramenta a serviço da recognição. ll Mas o que isso quer dizer exatamente? Como devemos entender tal distinção, se o próprio Deleuze afirma aqui que "todo filósofo é primeiramente um criador de conceitos"? Que diferença pode ser apontada entre os que criam ou não, 137 se é o próprio Deleuze quem afirma que um filósofo que não criou os seus conceitos, que não traçou o seu próprio plano de imanência, não é sequer um filósofo? Acreditamos que o problema que se coloca esteja diretamente associado à questão apresentada no parágrafo anterior, ou seja, a relação entre "planos de imanência" e "imagem do pensamento". Para começar, Deleuze parece tomar a questão de dois modos distintos: no primeiro caso, ele pretende mostrar a diferença entre uma filosofia, entendida como ciência pura, que teria feito do pensamento uma simples atividade de recognição (pensamento
=
representação) e uma outra que
afirma o pensamento como uma verdadeira "máquina de guerra", como um "modo de existência". Se ele chega, portanto, a estabelecer uma distinção entre filósofo e pensador, ela só tem sentido como uma forma de marcar bem a distinção entre o que significa "pensar" e "reconhecer". Em outras palavras, essa distinção está diretamente ligada ao aspecto de força ou potência de um pensamento. Um pensamento que não tem outra atividade senão a da recognição não pode de modo algum ser um criador de no vos mundos e novas possibilidades de existência. Mas como devemos ligar isso à imagem do pensamento? Qual seria o outro modo de ver a questão? Bem, a outra forma diz respeito ao fato de que, sedentários ou nômades, os filósofos criam conceitos. Aí está a diferença entre eles e os cientistas, por exemplo. Não importa, neste sentido, se esses conceitos servem a um ou outro tipo de filosofia; a verdade é que todo filósofo é um criador. Ou seja, ele pode ou não criar formas de existência, pode ser ou não capaz de criar um pensamento que subverta toda uma antiga ordem, mas ele inegavelmente cria conceitos e, em seu plano de imanência, tais conceitos existem e subsistem independentemente do mundo exterior. Quanto à imagem do pensamento, ela parece funcionar como um "plano" ainda mais profundo, ainda mais subterrâneo do que aqueles que são traçados pelos filósofos. Quando se 138
diz que a filosofia, desde os seus primórdios, erigiu uma imagem dogmática do pensamento, isso não tem outro significado a não ser apontar aquilo que está presente de modo implícito na criação filosófica. De certo modo, toda imagem do pensamento, seja ela qual for, supõe sempre pressupostos ou postula_ dos implícitos - cuja fórmula, retirada do senso comum, serve de base ao pensamento como recognição. A sua fórmula é a do "todo mundo sabe': "Todo mundo sabe, antes do conceito e de um modo préfilosófico", 12 o que significa pensar, o que significa ser. Daí ser verdade que podemos associar filósofos que estejam integrados por uma imagem de pensamento comum, não esquecendo, porém, as Suas criações particulares - muito mais valiosas do ponto de vista da afirmação de sua singularidade. Ocasionalmente, "plano de imanência" e "imagem do pensamento" são usados com o mesmo significado, mas é importante não esquecer o que essencialmente os distingue. Um bom exemplo da diferença entre "plano de consistência ou imanência" e "imagem do pensamento" parece ter sido dado pelo próprio Deleuze, muito antes da sua abordagem em O que é a filosofia? Sobre Descartes, Deleuze afirmou o seguinte: nas Meditações, Descartes negou-se a definir o conceito de homem como animal racional; ele negava-se a fazê-Io por acreditar que tal conceito remetia a dois pressupostos objetivos (animal e racional) que ainda não haviam sido devidamente analisados. Mas, ao supor o conceito de Cogito, Descartes não tinha menos pressupostos - ainda que eles fossem implícitos. Com relação aos primeiros pressupostos - aqueles que envolvem os concei tos mais diretamente -, vemos que Descartes não só escapa deles, como também demonstra claramente que será preciso revêlos (devemos ver aqui o movimento singular de Descartes para criar os seus próprios conceitos). Mas, dos segundos postulados - aqueles que estão envolvidos em um sentimento -, Descartes não consegue escapar.13 Daí por que supomos que a "imagem do pensamento" funcione como um "plano" mais amplo, 139 algo que, dada a sua fluidez, permite ser perado por planos diversos. E isso porque a "imagem do pensamento" não tem a consistência do plano de imanência, que é povoado por conceitoS criados deliberadamente. Ao contrário, ela pertence ao âmbito do "inconsciente filosófico" ou da "esfera préfilosófica". Ela é anterior à criação do filósofo e o impele (como tendência) para um determinado caminho. "É a imagem do pensamento que guia a criação dos conceitos. Ela é como um grito, ao o que os conceitos são cantos." 14 Essas "tendências", essa espécie de a priori do ato criativo, são rejeitadas pelo filósofo nômade. E aqui, voltamos à primeira distinção: o sedentário cria os seus conceitos, mas o faz sob a égide de uma imagem dogmática do pensamento; o nômade é aquele cujo pensamento não tem imagem.'s Ele é o sujeito da má vontade, como vimos no capítulo L Ele é o homem sem pressupostos, que diz que não sabe o que "todo mundo sabe". Ele enfrenta o caos tanto quanto o pensador sedentário (já que todo plano de imanência funciona como um crivo no caos), só que o faz sem armaduras, sem idéias predeterminadas, sem postulados implícitos. Tentemos agora definir, com o máximo de precisão possível, o que Deleuze chama de "plano de imanência", de modo que possamos entender melhor a relação profunda que existe entre ele e os conceitos que o habitam. Afinal, um conceito não pode ser completamente entendido fora do plano que lhe dá consistência e vida própria, apesar de que se deve ter cuidado para não confundi-Io com o próprio plano. b conceito não existe fora dele, embora não possa ser distinto dele. O conceito é como um raio que corta o céu cinzento; o raio não é o céu, mas também não existe fora desse mesmo céu. Na verdade, um não pode ser visto sem o outro, ainda que sejam distintos um do outro. 16 Um plano de imanência é um "corte no caos", ele age como um "crivo" (uma forma de impedir que o pen samento se perca no próprio infinito que deseja conquistar). Como diz Deleuze, o problema da filosofia está em adquirir 140
uma consistência - única maneira, como dissemos, de evitar que o caos (mental ou físico) impeça o ofício do filósofo. Os conceitos, portanto, funcionam como ordenadas intensivas e os seus componentes são o que
Deleuze chama de "linhas diagramáticas': É evidente, e já o sabemos, que podemos encontrar em alguns filósofos traços ou linhas diagramáticas herdadas de outros. É assim que encontramos alguns dos componentes da filosofia platônica em Aristóteles ou traços de Hume em Kant. Mas é preciso lembrar que esses traços sofrem uma profunda mutação num novo plano ou segundo uma outra imagem de pensamento. 17 Isso quer dizer que, enquanto os conceitos são fragmentários e parciais18 (embora não deixem de ser também um "todo", na medida em que totalizam os seus componentes), o plano de imanência é um "Uno-Todo". Ele compreende todos os conceitos, como se fossem tribos que povoam a sua região. Como diz Deleuze, o plano de consistência ou planômeno é uma mesa, uma bandeja, uma taça. Ele não é um conceito nem o conceito de todos os conceitos; ele é o meio fluido onde os conceitos são construídos. Mas o que é um conceito exatamente? Como pensá-Io fora da representação? Bem, mais uma vez, Deleuze e Guattari são explícitos: um conceito é um incorporal, é um acontecimento puro.19 Como um incorporal, o conceito tem uma espécie de "subsistência" ou "insistência" no tempo (como vimos entre os estóicos); e como todo acontecimento, ele tem uma dualidade: ele aponta, ao mesmo tempo, para as proposições (sem as quais ele não seria ível de expressão) e para os corpos (nas suas efetuações espaço-temporais). Em suma, o conceito diz "o acontecimento e não a essência ou a coisa". Por isso, ele não é referencial, como dissemos acima, mas auto-referencial. Ele põe a si mesmo e põe seu objeto no mesmo instante de sua criação. Ele não diz a coisa em sua materialidade física, ele busca na coisa o seu acontecimento.2o Mas o próprio conceito é um tipo de acontecimento, de modo que o rosto é um aconte141 cimento puro quando é tomado como conceito. 21 Isso não quer dizer que ele não seja "conhecimento". Ele é conhecimento, só que conhecimento de si e do "puro acontecimento". Daí por que a sua função não é reeabrir algo de concreto no real, ainda que o real seja a sua matéria de atualização. 22 Em Deleuze, todo conceito é uma virtualidade e uma multiplicidade. 23 Por todas essas afirmações, estamos cientes de que também a idéia de "verdade" sofre uma profunda transmutação na filosofia de Deleuze. Sabemos, é claro, que o filósofo não é mais o homem de boa vontade, aquele que está em sintonia com a verdade; que a verdade não é um "universal abstrato" e que o pensamento está longe de ter, como tarefa suprema, uma função recognitiva. Mas será que podemos repensar a noção de "verdade" na filosofia de Deleuze? Como podemos pensar em algo que seja sempre verdadeiro, se cada filósofo traça um plano de consistência que diz respeito, única e exclusivamente, à sua criação? Como pensar a "verdade" se a crítica de um filósofo aos demais deve ser entendida apenas como uma constatação de que seus conceitos encontram-se em planos distintos? Afinal, segundo Deleuze e Guattari, "criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio".24 Mas seria isso o mesmo que dizer que não existe algo de verdadeiro ou que não existem "verdades"? Certamente, um pensamento que se pretenda sem imagens, um pensamento nômade por excelência, desconhece o valor da verdade como universal abstrato. Ele nega a verdade como essência pura, formal. Não acredita em métodos perfeitos que possam arrebatáIa. Se a verdade existe para tal filosofia, ela é antes verdade do acontecimento. Nesse ponto, todo acontecimento tem a sua verdade ou, mais especificamente, o seu sentido (que não se confunde com as efetuações espaço-temporais dos acontecimentos). Dizer o sentido de uma coisa é dizer o seu acontecimento 142
puro - sendo que o sentido não existe fora da proposição que o exprime. Também a diferença tornada conceito é um acontecimento puro, mas, como todo acontecimento, ela também aponta para as coisas e é assim que o sentido é, ao mesmo tempo, o expresso e o atributo das coisas. 2s Afinal, "o acontecimento subsiste na linguagem, mas acontece às coisas".26
Pois bem, precisamos ter em mente que o acontecimento puro é o próprio sentido e, como tal, pertence à linguagem. Contudo, não podemos esquecer que a linguagem é o que se diz das coisas. Pode-se concluir daí que a verdade é expressa pela linguagem, mas que ela não pode ser confundida nem com o que é dito nem com as manifestações espaço-temporais do acontecimento. O sentido seria a quarta dimensão. da proposição, que não se confunde nem com a esfera da designação (que relaciona a proposição com um estado de coisas físico) nem com a manifestação (que é a relação entre o que é dito e o sujeito que enuncia - o que transforma as crenças e os desejos em inferências causais), e muito menos com o campo do significado (ou seja, a relação das palavras com conceitos gerais e universais).27 A verdade, portanto, pertence a essa esfera, ela é o expresso, o sentido, o acontecimento
puro. Mas o sentido é já um efeito das relações travadas entre os corpos; os corpos são causas uns para os outros, uns com relação aos outros. São causas desse tipo de ser ou "extra-ser" que não se confunde com as marcas dos corpos, com os seus afetos = suas qualidades físicas. É neste sentido que os acontecimentos "possuem uma verdade eterna e seu tempo não é nunca o Jresente que os efetua e os faz existir, mas o Aion ilimitado, o infinitivo em que eles subsistem e insistem".28 É preciso, porém, 1ão confundir a "verdade eterna" do acontecimento com a veriade como um universal abstrato. Os acontecimentos não são essências platônicas, mas efeitos de superfície, e são antes de udo efeitos das relações entre os corpos. Deleuze não nega a 143 multiplicidade de sentidos de um acontecimento (quando os entende na sua relação com um campo histórico e social), mas ite a existência dos acontecimentos nas suas efetuações espaço-temporais. Em outras palavras, os seres existem e os seus acontecimentos também, não é a linguagem que os cria, mas é ela que os expressa. Na verdade, estamos cada vez mais próximoS da compreensão do conceito deleuziano de diferença pura; falta-nos apenas conjugar todos os elementos que até então foram matéria de nossa pesquisa: antologia, univocidade, imanência, repetição, singularidade, acontecimento, virtualidade.
A Idéia de diferença e a essência da repetição 29 Para Deleuze, o mundo moderno nasce da falência da representação. É um mundo onde as identidades não am de simulações no "jogo" mais profundo da diferença e da repetição. 3o Este é, para Deleuze, o mundo dos simulacros, das distribuições nômades, o mundo das diferenças. Porém, a despeito disso, não existia ainda no "céu filosófico" um conceito autêntico de diferença ou, mais especificamente, não havia sido ainda criado um conceito que desse conta da diferença em si mesma. A razão disso é que sempre se confundiu a criação de um conceito de diferença com a inscrição da diferença no conceito em geraUl Dessa maneira, a diferença - já mediatizada - era sempre associada à negação e à contradição (que representam, para Deleuze, as formas menores e mais baixas da diferença). Era preciso inventar um conceito que libertasse a diferença das regras limitadoras da representação. E libertá-Ia da representação é libertá-Ia de sua subordinação à "identidade", ao "mesmo" e à "semelhança". É dar a ela "voz" própria, ou seja, é assegurar à diferença uma ontologia sempre negada por nma imagem de pensamento ortodoxa. Dissemos "ontologia" porque a diferença pura é a própria expressão do "ser". 144
Uma rápida recapitulação dos temas e dos filósofos apresentados no capítulo II nos revela a tendência mais constante da filosofia: o repúdio a toda forma de diferença e de mudança. Jean Wahl chega mesmo a afirmar que grande parte do desenvolvimento da Metafísica, no Ocidente, deve ser entendida como uma reação a todo tipo de pensamento do devir. 32 Com raras exceções (e Nietzsche é uma delas), a filosofia colocou a diferença no lugar do "não-ser"; quando muito, reservou a ela um mínimo de existência. E foi assim, como o grau mais baixo do Ser, que Platão reconheceu a diferença sensível, tendo de itir que, numa certa medida, o "não-ser" existia (o chamado "parricídio teórico"). Mas Platão colocou a diferença do lado da matéria, fez dela uma marca da corrupção e da fugacidade. Ela pertence
ao abismo negro, ao caos que PIa tão pretende recalcar, ou melhor, aprisionar no fundo do oceano. Sim, a diferença existe. Não há dúvida que os corpos se modificam sob a ação do tempo, mas o ser está preservado em Platão. Afinal, o ser está fora do tempo. Mas Platão precisa ainda resolver o problema da predicação, uma vez que, sendo imutáveis e imóveis, as Idéias não poderiam se comunicar umas com as outras (o que tornaria o conhecimento uma pura tautologia). Também aqui seria preciso reconhecer um certo movimento no mundo das Idéias. Seria preciso incluir a existência da diferença também no mundo inteligível, já que uma idéia, para se conjugar com uma outra, precisa não só guardar a sua identidade como marcar bem a sua diferença com relação às demais. Afinal, não se pode correr o risco de misturar as Idéias aleatoriamente. Assim, a diferen ça é introduzida como alteridade no mundo das essências: da Idéia se diz que ela é idêntica a si mesma e também "outra" com relação às demais. Mas há ainda um outro problema que também envolve as Idéias, e ele diz respeito à sua relação com as cópias e, mais fundamentalmente, com os simulacros. Bem, 145 sabemos que as Idéias são arquétipos, fundamentos, são o próprio ser em si, e que são modelos para um mundo que as imita e que só possui um mínimo de ser porque mantém com elas uma relação de semelhança. Vemos como a representação começa a ser fundada em Platão: todo objeto material deve entrar em uma relação direta com um modelo, um fundamento. É preciso que ele se submeta à prova do idêntico e do mesmo para ser reconhecido, sendo que as boas cópias são aquelas que interiorizam (no sentido espiritual) essa relação. Bem, a diferença não deixa de ser estabelecida em Platão. Só que ou bem ela é o monstro que precisa ser aprisionado (no caso da diferença sensível), ou bem ela é alteridade pura (que, como vimos, se coloca mais como uma condição de possibilidade para a comunicação do idêntico com o idêntico do que revela a boa vontade de Platão para pensar a diferença em si). A verdade é que Platão condena toda forma de diferença livre. Daí por que ele empreende uma luta sem tréguas contra o simulacro, contra as cópias mal fundadas - aquelas que se negam à soberania do modelo, que se furtam à ação dos fundamentos. A luta de Platão (que não nega a "existência" da diferença como o fundo da própria matéria) consiste em impedir que a diferença venha à tona, que ela suba à superfície dos corpos e possa corromper os já frágeis limites das cópiasÍcones. Como diz Deleuze, "o único pecado é o de fazer com que o fundo suba e dissolva a forma".33 Nesse ponto específico, Platão não parece de todo equivocado ao supor que a diferença é o "monstro" - já que ela realmente subverte a relação entre as Idéias e os corpos. O seu "erro", no entanto, não está só em atribuir à diferença uma conotação moral, mas em pensá-Ia como algo que não pertence ao ser, como algo que o limita e o corrompe. Em Deleuze, ao contrário de Platão, a relação fundamental que se estabelece entre os seres ou mesmo entre os entes e a Idéia é a do diferente com o diferente e não a do semelhante 146
com o idêntico ou do idêntico com o diferente. Isso porque a Idéia em Deleuze não é uma essência em si, mas uma virtualidade que aponta para uma divergência, uma multiplicidade de seres. "Neste sentido, uma Idéia nem é una nem múltipla: é uma multiplicidade."34 Não é uma única Idéia que se distribui para todos os corpos nem são corpos que participam de uma mesma Idéia. A Idéia é, ela própria, uma "multiplicidade virtual': Ou melhor, ela é multiplicidade expressa como Idéia. O problema é que Platão concebeu o ser como um "em si", transcendente, uno e perfeito, enquanto que o ser deleuziano se diz da diferença e se diz na multiplicidade. Também Aristóteles (e talvez mais do que qualquer outro) foi um grande adversário da diferença pura. A sua proposição acerca disso não deixa margem para dúvida: "A diferença se diz das coisas que guardam primeiramente alguma identidade", A diferença está, portanto, subordinada ao idêntico; ela é segunda com relação à identidade e ao mesmo. É verdade que não existem Idéias supra-sensíveis, modelos transcendentes, mas os conceitos aristotélicos não são diferentes do ponto de vista da
subordinação dos seres a um princípio de identidade máxima. Também em Aristóteles a diferença é estabelecida, só que agora "estabelecer" significa "mediatizar", "representar". Não obstante, só há representação do que é sensível, só representamos as substâncias primeiras. Ora, ao que tudo indica, a diferença tornou-se apenas uma determinação extrínseca, uma propriedade, sendo que o próprio Aristóteles se nega a levar em consideração os acidentes - uma vez que estes, sendo cambiantes, não integram a definição de ser. Isso não quer dizer que Aristóteles negue as diferenças individuais, o "jogo" das mutações físicas, mas significa que, para ele, os acidentes estão como que na vizinhança do nãoser e, portanto, não possuem nenhum valor ontológico. Ora, Aristóteles só considerou a diferença do ponto de vista de sua determinação extrínseca e, o que é pior, reduziu toda e 147 qualquer manifestação da diferença a uma diferença de espécie.35 Só que, segundo Deleuze, a diferença específica de modo algum representa um conceito universal para todas as singularidades e sinuosidades da diferença (isto é, uma Idéia), mas designa um momento particular em que a diferença apenas se concilia com o conceito em geral,36 É o chamado "feliz momento grego", o momento em que enfim a diferença é estabelecida. Mas Deleuze sabe que a diferença específica só designa um máximo inteiramente relativo, um ponto de acomodação do olho grego, e de um olho "que perdeu o sentido dos transportes dionisíacos e das metamorfoses".3? Daí por que a diferença parece nunca "mudar", como se não existisse um diferenciador na própria diferença. A diferença torna-se, por fim, estática. Torna-se apenas um "predicado na compreensão do conceito".38 Afinal, sem um diferenciado r, perde-se a noção básica que acredita que o aparecimento da diferença não se dá sem que se deflagre uma agem (quer de um estado a outro, quer no próprio ato de marcar ou diferenciar um ser). O diferenciador da diferença é exatamente a idéia de que algo não muda sem deixar de ser outra coisa e não encarnará outro acontecimento sem deixar de ser o mesmo. É nesse sentido que a diferença não é uma determinação apenas, ela pressupõe uma relação, quer
entre a determinação e o que é determinado (diferença transcendental), quer como efeito de um acontecimento quando este se efetua no corpo (diferença empírica). Por exemplo: o "adoecer" é um acontecimento que tem um sentido enquanto é expresso na proposição e uma atualização enquanto se efetua nos corpos. A "doença" em si não existe, mas subsiste como produto de determinadas relações (ela é, para usarmos um termo estóico, um quase-existente e é, no sentido espinosista, o resultado de um mau encontro de corpos). Também a doença não existe nela mesma, tanto quanto a dife148
rença em si não é uma essência. Mas um corpo doente difere tanto dele mesmo (se visto numa linha sucessiva do tempo) quanto dos corpos saudáveis. É assim que a diferença sempre emerge quando um acontecimento se faz presente em nosso corpo. É assim que ela não é o próprio acontecimento, ainda que não possa ser separada dele. E, neste sentido, pouco importa se a diferença é de espécie ou é individual. Mas não podemos ainda explicar o que isso significa em profundidade. A única coisa que podemos dizer é que essa forma de entender a questão modifica e desloca tanto o problema da diferença em si quanto o da própria diferença empírica. Como vimos no capítulo I, submeter a diferença às exigências do conceito em geral (isto é, aos quatro liames da representação - a identidade, a oposição, a semelhança e a analogia) é torná-Ia um organismo harmonioso, ível de uma compreensão lógica e racional. Mas a diferença em si está longe de ser um organismo harmonioso. Sobre esse aspecto, somos obrigados a dizer que ela está bem mais próxima do monstro de Platão do que da forma inocente a que é reduzida pela representação aristotélica. A verdade é que a representação só nos fornece uma imagem menor e menos significativa da diferença.
A diferença deve sair de sua caverna e deixar de ser um monstro; ou, pelo menos, só deve subsistir como monstro aquilo que se subtrai ao feliz momento, aquilo que constitui somente um mau encontro, uma má ocasião.39 De fato, a representação reduz a diferença. Mas isso não significa que uma representação que ampliasse os seus limites (uma representação infinita) pudesse melhor apreendê-Ia. A verdade é que sempre "a representação deixa escapar o mundo afirmado da diferença"4o e isso porque toda representação (finita ou infinita, orgânica ou orgiástica) tem apenas um centro, uma perspectiva, para entender todas as coisas. "O que se censura à representação é permanecer na forma da identi149 dade",41 seja ela finita ou infinita. E não basta multiplicar as perspectivas; seria preciso antes disso tomar cada coisa como uma "obra autônoma", com um sentido diferente. Em suma, a representação pode tornar-se infinita, mas não adquire o poder de afirmar a divergência e o descentramento; tem necessidade de um mundo convergente, monocentrado: um mundo em que se está embriagado apenas na aparência, em que a razão se faz de bêbada e canta com ar dionisíaco, mas é ainda razão "pura".42 Então, só se diz que "a representação reduz a diferença" no sentido de que ela só apreende uma diferença menor, uma diferença que se dá nos corpos. Mas é preciso não confundir o diverso com a diferença. O diverso é o dado, mas a diferença é aquilo que faz com que algo seja diversoY Daí podermos dizer que, vista sob um outro ângulo, a representação jamais apreende a diferença .. Tomando o próprio exemplo de Platão, diríamos que a diferença é algo que aparece quando o fundo vem à tona, quando ele entra numa relação essencial com a superfície dos corpos e a altera. É a representação que compreende essa alteração como diferença de espécie ou como uma forma de nãoser (quando se trata de pensá-Ia como um acidente). Mas as determinações são acontecimentos, são efeitos de relações diferenciais que terminam por se "encarnar" nos corpos. Não é a diferença que marca o corpo, mas são os acontecimentos sempre diferenciais que a trazem como marca do seu próprio existir.44 Mas o que é a diferença pura? Muitos filósofos, como vimos no capítulo II, tentaram dar conta da diferença. Outros só transversalmente colocaram a questão, mas não ousaram defini-Ia. O mais interessante é que muitos filósofos (cada um à sua maneira e muitas vezes sem tocar diretamente nessa autêntica "ferida exposta" da filosofia) contribuíram para a reflexão deleuziana acerca do conceito de diferença. Como disse150
mos no item anterior, alguns conceitos funcionam como elementos em outros planos e é aqui que faremos a grande relação entre os elementos que deram vida à criação deleuziana. Sim, porque a filosofia é como a arte: um quadro pode ser composto por elementos comuns a outros quadros, mas é o toque do artista que garante a singularidade de sua obra. Na música, por exemplo, trata-se sempre dos mesmos sons. É assim que cada novo arranjo torna-se o prenúncio de uma nova música. Sem mais delongas, é preciso explicitar o que já estava, por todo o texto, subentendido: a diferença pura é o acontecimento maior do ser.4S Não um acontecimento qualquer e sim o primeiro e o mais significativo de todos. A diferença está no cem e do próprio ser, como a sua manifestação mais profunda. O ser, na verdade, se diz da diferença. Ele não é "a" diferença em si, no sentido platônico do termo. Mas é diferença em si no sentido em que uma filosofia da diferença a toma: um ser unívoco que se diz da diferença. Neste sentido, ele se expressa na multiplicidade e afirma as diferenças que o compõem, não como um todo fechado, nem mesmo como finito ou infinito, mas como um "acabado ilimitado".46 Mas como entender tal afirmação? Ela só poderá ser plenamente compreendida quando definirmos o próprio ser em Deleuze. Somente assim entenderemos o lugar que a diferença pura ocupa em sua filosofia e por que ela só pode ser objeto do pensamento e nunca da representação.
Primeiramente, como dissemos, o ser é unívoco. Mas o que isso quer dizer exatamente? Quer dizer, primeiramente, que ele não é nem equívoco nem análogo. Mas isso também não noS esclarece muita coisa; precisamos agora compreender a partir de que ponto Deleuze retoma essa antiga questão, legada dos medievais. Comecemos pela equivocidade. Dizer que" o ser é equívoco" é dizer que o ser se diz em muitos sentidos, ou seja, que ele se enuncia de muitas maneiras. Quando Aristóteles, por exemplo, critica a univocidade parmenídica, ele o faz em razão do caráter limitador dessa teoria que impede a predicação,
151 uma vez que considera que nada se pode dizer do ser além de o ser é. É dessa maneira que o ser parmenídico se diz de uma só e única maneira. Dele nada mais se pode enunciar além de sua própria existência. Mas, para Aristóteles, a questão do discurso, da enunciação do ser, é absolutamente imprescindível em seu pensamento. O ser não só pode ser enunciado, como também pode ser enunciado de muitas formas, quer pela sua "essêncd', quer pelos seus acidentes. Eis o que Aristóteles chama de doutrina das categorias. E é neste sentido que podemos falar de uma equivocidade do ser ainda que pensar por categorias seja pensar por analogia (como veremos adiante). Pois bem, no caso específico de Santo Tomás, tanto a univocidade quanto a equivocidade pura pareciam-lhe heréticas. E isso porque, enquanto a primeira fazia com que todos os seres pudessem ser ditos de uma mesma maneira, sem distinção, a segunda, por sua vez, não deixava clara a distinção entre os seres, ou seja, entre Deus e os demais existentes. A questão de Santo Tomás, portanto, incide sobre a diferença de perfeição que deve existir entre o ser necessário (Deus) e seres contingentes (o homem, por exemplo). É aqui que Santo Tomás elabora, a partir do próprio aristotelismo, uma teoria da analogia do ser. Em uma aula ministrada em Vincennes, Deleuze mostra com muita clareza em que medida a analogia se diferencia da equivocidade: "O ser é dito em vários sentidos daquilo de que ele é dito e estes sentidos não deixam de ter uma medida comum, eles têm uma medida analógica".47 A diferença básica entre a equivocidade e a analogia é que, embora o ser se diga em muitos sentidos, esses sentidos serão regidos por relações de analogia - o que quer dizer, em suma, que o ser tem um sen tido primeiro e outros que derivam dele. Dizemos assim que Deus é o ser no primeiro sentido e que tudo o que existe deriva desse primeiro ser. Também pode-se dizer que Deus é formalmente bom, enquanto o homem é bom de modo secundário e por derivação. Funda-se aqui a idéia do conhecimento análogo, 152
que serve muito bem aos propósitos da representação. Conhecer por analogia é conhecer por similitude, algo que é próximo sem jamais ser a coisa em si. Melhor dizendo, as categorias se aplicam a toda e qualquer substância sensível, mas só se chega ao ser por abstração - já que o "ser enquanto ser" é algo que está fora da corrupção material. É assim que, como um bom aristotélico, Tomás de Aquino também partirá do sensível para chegar ao inteligível - ao ser em si. Parte-se do homem e che ga-se a Deus. Uma forma de conhecimento que será negada pelo grande pensador da univocidade no mundo medieval: Duns Scot. É claro que em Duns Scot, o ser, ainda que fosse unívoco, estava longe de ter uma unidade do ponto
de vista de sua materialidade (o que só acontecerá com Espinosa - que faz coincidir o ser com a substância única, que é Deus). Afinal, levando-se em consideração os perigos que uma afirmação desta natureza poderia gerar na Idade Média, Duns Scot teve o cuidado de pensar· o ser como neutro, abstrato, indiferente ao universal e ao singular, ao criado e ao incriado; e é neste sentido que um cachorro e um homem são. De qualquer modo, a univocidade não pretende mesmo negar a diferença entre os seres. Scot, por exemplo, termina por pensá-Ia como resultado tanto da dis tinção formal quanto da distinção modal. Mas, é claro, Deus tinha de estar para lá do "ser comum" - ou então Scot correria o risco de ser acusado de panteísmo (algo bastante perigoso em sua época). A univocidade, na verdade, terá a sua expressão máxima com Espinosa, onde o ser se confunde com a
própria substância única, que é Deus. Isso quer dizer que tudo o que existe é parte de Deus. Aqui, e somente aqui, univocidade quer dizer um só ser e uma só substância para todos os seres. Mas o que são os existentes num mundo onde só há um ser? Eles serão modos desse ser, afirma Espinosa. Uma só voz, um só ser para toda a multiplicidade. Sim, de fato, sabemos agora o que quer 153 dizer univocidade em Parmênides, Duns Scot e Espinosa (já havíamos trabalhado com esses filósofos no capítulo lI). O que queremos saber agora é como Deleuze pensa a univocidade. Sejamos bem cuidadosos aqui. Deleuze não pensa o ser como Espinosa. Em Deleuze, a univocidade não significa que só há um único e mesmo ser para todas as coisas. Ao contrário, os seres são múltiplos e diferentes, "sempre produzidos por uma síntese disjuntiva, eles próprios disjuntos e divergentes".48 Univocidade, em Deleuze, significa que todos os seres se dizem de uma mesma maneira e num único sentido. Uma só "voz" para todos os seres - afirma Deleuze. E uma só voz que diz não à identidade enquanto afirma a diferença e o devir. Ora, é o próprio Deleuze quem define o ser unívoco como sendo "ao mesmo tempo, distribuição nômade e anarquia coroada".49 Em suma, o mais importante da univocidade não é que o ser se diga num único sentido, mas que ele "se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas':so Em outras palavras, o ser "se diz da própria diferença':sl Ao contrário do que pensa Platão, não há mundo inteligível e mundo sensível; este é o único mundo que existe e aqui as identidades e as semelhanças são apenas simulações no "jogo" mais profundo da diferença. Ser unívoco significa aqui multiplicidade e diferença e não identidade plena. Este é um mundo de simulacros e a relação essencial é entre o "diferente" e o "diferente" e não entre um modelo e as suas cópias, entre um idêntico e um semelhante: "Quanto à semelhança, ela nos pareceu resultar do funcionamento do sistema, como um 'efeito' erroneamente tomado como uma causa ou uma condição".52 Platão já havia assinalado o fim supremo de sua dialética: estabelecer a diferença. Acontece que, segundo Deleuze, a diferença não está entre a coisa e os simulacros ou entre o modelo e as cópias, "a coisa é o próprio simulacro".s3 O idêntico e o tnesmo só podem ser ditos da diferença. É preciso destruir radicalmente a identidade do Mesmo, como algo que é sempre 154
"em si" o modelo, o fundamento, o centro de todas as coisas. "É somente sob esta condição que a diferença é pensada em si mesma e não representada, mediatizada."54 É como dissemos acima: não basta multiplicar as perspectivas, é preciso tomar cada coisa como uma "obra autônoma". Não é sem razão que Deleuze atribui ao mundo moderno, e sobretudo à arte moderna, a liberação dos simulacros. Como afirma Umberto Eco, a arte moderna se identifica pela ausência de centro e de convergência,55 o que torna cada obra singular e cada ser, único e insubstituível. Mas, para Deleuze, o ser unívoco só é efetivamente realizado no eterno-retorno.56 Isso porque a sua verdadeira potência está ligada à sua própria repetição. É neste sentido que Deleuze afirma que a repetição é o ser informal de todas as diferenças, já que ele não faz retomar o mesmo e o idêntico, mas a própria diferença:
o eterno retorno não faz o mesmo retornar, mas o retornar constitui o único Mesmo do que devem. Retomar é o devi r idêntico do próprio devir. Retomar é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente. 57 O ser unívoco, portanto, se diz num único sentido, mas "este sentido é o do eterno retorno':58 Vejamos se a questão está suficientemente clara: o ser é unívoco, mas isso não significa dizer que "tudo é um" (tal como Espinosa O entendeu, ao acrescentar à idéia do ser unívoco a de substância única). Os seres são múltiplos. "Tudo é um" em um outro sentido, isto é, o ser é "um" na forma de se expressar; o ser ou os seres se dizem sempre da mesma maneira: afirmando a sua diferença ou a sua disparidade com relação aos outros. O ser afirma o dessemelhante, o diferente, o desigual, as séries divergentes.
Como dissemos antes, a semelhança não a de uma simulação no próprio "jogo" da diferença (nunca uma folha é exatamente igual a 155 outra). O Idêntico não a de uma forma vazia, enquanto "imitar" as formas é apenas um dos acontecimentos da matéria. Mas, mesmo dessa imitação, só se pode dizer que ela é completa quando o sujeito cognoscente estabelece as regras de submissão das coisas ao conceito em geral - ou seja, quando ele descarta as diferenças individuais e só leva em conta o que há de mais regular nos seres. Mas Deleuze não nega as regularidades, ele nega o idêntico, nega a submissão dos seres a um único princípio ou fundamento. Afinal, pertence mais ao ser o "diferenciar-se" do que o "igualar-se". O "igualarse" é um efeito, mas em profundidade, todo ser guarda um diferencial- algo que só diz respeito a ele mesmo. Leibniz também acreditava nisso. Foi o que o levou a pensar na existência das "essências individuais". Cada essência, uma mônada, cada ser, um mundo possível... Mas seria preciso que os mundos fossem "compossíveis", para que as mônadas não fossem, em si, universos isolados e incomunicáveis. Daí por que ele pensou cada mônada fechada, mas contendo o mundo inteiro dentro de si. Elas se distinguiriam umas das outras como pequenas regiões de um mesmo ser, como pontos de vista particulares de um mesmo mundo. É verdade, então, que Leibniz afirmou a existência das substâncias individuais, mas, para Deleuze, ele também terminou por subordiná-Ias a condições de convergências ilegítimas, que manifestavam claramente as exigências da representação. 59 Pois bem, vimos de que maneira a diferença pura, como expressão do próprio ser, revela-se inível à representação _ que tende a subordinar todos os seres a um único fundamento e tende, sobretudo, a reduzir a diferença pura a manifestações empíricas. Mas a diferença está no âmago do próprio ser. O ser não pode se dizer de outra maneira, uma vez que existir é já diferenciar-se. Trata-se de entender a diferença como um desdobramento do próprio ser - que se diz assim em todas as suas relações. O ser não se apresenta, não se efetua fora dessas 156
relações diferenciais. Ele emerge do caos como uma virtualidade que produz a diferença, já que o caos puro, o devir-Iouco é o lugar da indiferença mais absoluta. Logo, falar do ser é falar de todas as diferenças que o expressam. É por isso que inicialmente falamos de um acontecimento do ser e um acontecimento no ser (na sua extensão, em seu tempo vivido). Não que haja um ser em si e seres atuais. O ser não se confunde com os entes, embora não possa ser distinto deles, já sua efetuação é sua existência. É preciso, portanto, não confundir os elementos virtuais que compõem o ser (e que estão na base de todos os seus acontecimentos) com uma essência platônica. Eles não são seres em si mesmos, não são formas vazias que se encarnam ou modelam uma matéria caótica. Ao contrário disso, são singularidades livres, nômades, que compõem todas as coisas. O ser é, antes de tudo, esse campo de singularidades impessoais, pré-individuais. E os acontecimentos são os próprios incorporais, as próprias singularidades em suas múltiplas combinações e agenciamentos. Eles são, de maneira objetiva e direta, as únicas idealidades do mundo deleuziano: "Os acontecimentos são as únicas idealidades; e reverter o platonismo é, em primeiro lugar, destituir as essências para substituí-Ias pelos acontecimentos como jatos de singularidades"60 Quando Deleuze, por exemplo, cita a teoria de Novalis em Lógica do sentido,61 ele o faz apenas para mostrar que a idealidade pode ser entendida fora da relação que comumente se estabeleceu entre idealidade e transcendência. O protestantismo ideal (com relação às efetuações desse acontecimento nos corpos ou no mundo físico) não é uma essência pura e transcendente, mas o efeito de uma conjugação efetiva de corposportanto, um acontecimento puro, que tem uma idealidade enquanto guarda um sentido próprio. Mas o próprio Deleuze não segue, da mesma maneira, essa distinção: não são dois tipos de acontecimentos, mas um mesmo acontecimento puro, que volta uma face para as coisas e outra para as proposições. 157
Como se fossem dois lados do espelho, onde o que está de um lado não é igual ao que está do outro. Deleuze cita Lewis Carroll e o exemplo dos espelhos para mostrar que existe, de um lado, um campo de designações (dos objetos, portanto) e, de outro, um campo puramente expressivo (o campo dos sentidos). "ar para o outro lado do espelho" é, portanto, sair da designação e mergulhar nos acontecimentos puros. É claro que o ser como atributo lógico (como acontecimento puro) só existe do lado dos sentidos. É verdade que "damos" o ser às coisas, damos os seus sentidos, mas isso não é o mesmo que dizer que a loucura como acontecimento não existe. Também não é o mesmo que dizer que a fome não pertence aos corpos vivos como um acontecimento que subsiste em todos eles. É claro que não há a loucura em si ou o amor em si como uma essência supra-sensível, mas ninguém pode negar que existam desvairados tanto quanto existem corpos apaixonados. É por isso que Deleuze busca um conceito que dê conta "de todas as sinuosidades da diferença", de todas as formas de manifestações dela. Mas ela mesma nada mais é do que uma virtualidade que aponta para as mÚltiplas aparições do díspar, tanto no mundo quanto no campo da linguagem e dos sentidos. Dizer que não existe um "em si" ou que o ser só se diz na linguagem não é o mesmo que dizer que não existem seres reais, que não existem efetuações dos seres no espaço e no tempo. O ser é múltiplo em Deleuze e, de certo modo, apenas os corpos têm existência plena ainda que eles só possam ser ditos ou só tenham um sentido na e pela linguagem -, quer nas suas regularidades, quer nos seus devires. Também Platão chegou a se perguntar, no Crátilo, se o devir não estaria numa relação muito particular com a linguagem.
Mas é preciso continuar lutando contra a confusão inevitável que se faz entre os acontecimentos puros e as essências. De nossa parte, ressaltamos que um acontecimento não é uma essência platônica na medida em que pressupõe uma imanência 158
absoluta. Não há uma verticalidade dos seres, uma superioridade no sentido moral, nem mesmo uma diferença quanto a um ser mais real e um ser menos real. O acontecimento é imanente tanto quanto todos os entes e só é menos real no sentido em que é pura virtualidade. Trata-se de uma idealidade imanente, de um transcendental no seio da natureza concreta.62 É aqui que devemos procurar entender melhor a questão do ser e de seu retorno. Mas não a entenderemos por completo se não soubermos exatamente o que são as singularidades impessoais. Ora, ainda que tenhamos tratado um pouco disso no capítulo I, precisamos esclarecer a natureza do que Deleuze chama de "singularidades" - uma vez que são elas, estritamente falando, as únicas coisas que realmente retomam. Vejamos como Deleuze coloca esta questão: O negativo não retorna. O Idêntico não retoma. O Mesmo e o Semelhante, o Análogo e o Oposto não retornam. Só a afirmação retorna, isto é, o Diferente, o Dissimilar. ( ... ) Com efeito, repete-se eternamente, mas agora este "se" designa o mundo das individualidades impessoais e das singularidades pré-individuais.63 Como já dissemos, é a repetição que realiza efetivamente o ser unívoco. E é ela que "aparece sob todos estes aspectos como a potência própria da diferença".64 Se, portanto, "o eterno retorno afirma a diferença, afirma a dessemelhança e o díspar, o acaso, o múltiplo e o devir':65 e se esse retorno diz respeito ao campo das singularidades e das individualidades impessoais, já sabemos o que, para Deleuze, não retoma: a pessoa, ou seja, o eu pessoal. Por isso, só tem sentido falar em eterno retorno se ele significa a repetição de algo que nos indivíduos representa a mais alta potência do ser e também o seu elemento "genético": as singularidades puras. Como dissemos no capítulo I, as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas. Mas, para que um mundo seja constituído, será necessário su159 por que as singularidades se prolonguem umas nas outras, formando séries convergentes. Um "outro"
mundo supõe uma divergência nas séries de singularidades: "Uma singularidade é o ponto de partida de uma série que se prolonga sobre todos os pontos ordinários do sistema até a vizinhança de uma outra singularidade".66 A convergência das séries se define como um continuum de singularidades e seria preciso que as séries se repetissem sempre da mesma maneira para fazer retomar o mesmo mundo e os mesmos indivíduos. Porém, pertence ao campo das singularidades um "princípio móvel imanente de autounificação por distribuição nômade ... ",67 o que impede a existência não só do idêntico em si, mas da repetição de um "mesmo': O único "mesmo" do eterno retorno é a sua própria repetição. E esse "mesmo" só retoma para trazer o diferente. "Uma espécie é feita de relações diferenciais entre genes, assim como as partes orgânicas e o extenso de um corpo são feitos de singularidades pré-individuais atualizadas."68 A espécie pressupõe uma convergência das séries e uma regularidade entre as relações diferenciais que a constituem, mas a cada novo indivíduo as séries se modificam. Por isso, nunca é o "mesmo" que retorna, o retorno é sempre de um "outro': É neste sentido que Deleuze acredita que os conceitos de singular e regular, ordinário e relevante
deveriam substituir, em termos de importância ontológica e epistemológica, os conceitos de verdadeiro e falso.69 Pois bem, Deleuze define a singularidade como essencialmente "pré-individual", "não-pessoal" e "aconceitual",70 o que significa dizer que ela pertence a um domínio neutro - indiferente ao individual, ao coletivo ete. Ela preexiste aos próprios indivíduos concretos e não pode ser conceituada - no sentido em que usualmente se toma um conceito, isto é, como tendo uma função designativa. O campo das singularidades aponta para uma multiplicidade, só que se trata de um campo virtual ou, mais especificamente, de uma esfera trans160
cendental. Pode-se dizer que "o campo transcendental real é feito desta topologia de superfície, destas singularidades nômades, impessoais e pré-individuais':71 Para Deleuze, "as singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais"72 Não existem estruturas transcendentais (como em Kant), mas singularidades livres e nômades. É por isso que, apesar de Deleuze ter atribuído a Kant a descoberta da diferença (não mais como diferença empírica entre os corpos, mas diferença transcendental entre "a determinação" e aquilo que ela determina),73 ele não pode deixar de criticar Kant por ter colocado as estruturas do sujeito do lado desse transcendental. Ora, para Deleuze, as emissões de singularidades se fazem sobre uma superfície inconsciente e suas sínteses, como vimos, se fazem por distribuições nômades. Não há lugar para nenhum tipo de estrutura na esfera transcendental, mas apenas para as singularidades ou "antigeneralidades" impessoais. Mas é preciso também não confundir transcendental com transcendente. Afinal, não há transcendência de qualquer espécie na filosofia de Deleuze. "O transcendente não é o transcendental. Na falta de consciência, o campo transcendental seria definido como um puro plano de imanência."74 Ora, como estabelecer essa diferença sem se deixar cair na idéia de que o transcendental pertence à esfera do caos purO?75 Sim, porque a filosofia, de um modo geral, estabeleceu apenas duas dimensões possíveis: a do ser e a do não-ser. E ninguém fez isso com maior precisão do que Pia tão, que colocou, de um lado, as coisas limitadas e medidas - quer fossem elas permanentes ou provisórias - e, de outro, o devir puro, sem medidas nem limites, o verdadeiro "devir-louco" que nunca se detém. 76 Em que lugar estariam as singularidades impessoais, do lado do ser ou do não-ser? Bem, a resposta já havia sido dada anteriormente: as singularidades são "seres" ou "quase-seres" que presidem todos os corpos e todos os acontecimentos; são uma espécie de "matéria virtual" - de onde derivam todas as coisas. Mas, se 161 tivéssemos que escolher um lado, elas certamente estariam do lado do caos puro. Vamos tentar explicar: o caos puro é, de fato, o abismo indiferenciado, o fundo negro, a ausência de
toda determinação possível. Mas, em Deleuze, a "indiferença" tem dois aspectos: um deles pode ser associado ao fundo negro, ao devir-louco de Platão -lugar do puro movimento, movimento indeterminado e ilimitado, que aponta para todos os lados ao mesmo tempo e que tem como maior característica fazer com que toda determinação se esvaneça antes mesmo de se fazer "presente': O outro aspecto é aquele que reserva à superfície uma calmaria onde as singularidades (consideradas determinações transcendentais) flutuam indiferentes umas às outras. Deleuze chama a isso o "nada negro" e o "nada branco" da indiferença?? e se pergunta: a diferença é intermediária, ela está entre esses dois extremos? A questão talvez deva ser colocada assim: quando é que o fundo deixa de ser fundo, quando é que as "determinações" se desprendem desse fundo e tornam-se autônomas e nômades? É possível pensar o vivo dentro desse fundo que a tudo empalidece e que certamente o destroçaria quando o lançasse num movimento de múltiplas direções? O transcendental é como a bolha que se desprende da água que está sendo fervida. Ela é parte dela, mas dela se diferencia sem poder, no entanto, existir sem ela. Deleuze dá o exemplo do raio que corta o céu cinzento. O raio não é o céu (há mesmo uma diferença bastante considerável), mas também o raio não existe fora dele. Ele se diferencia sem ser outro, ou melhor, ele é outro sem deixar de ser parte desse fundo. É assim que vemos esse lugar das singularidades transcendentais; aliás, essa é a única maneira de o "vivo" também aparecer no mundo. O ser é algo que se desprende do fundo (as singularidades virtuais que compõem os seres que somos), o ser emerge do caos puro (como o exemplo do raio e o da bolha), mas ele próprio não é caos puro, devir162
louco. Não há estabilidade nem regularidade no caos, a não ser quando ele sobe à superfície e diferencia-se de seu próprio fUndo. O ser é, portanto, devir e regularidade ao mesmo tempo, é virtualidade e atualidade (quando se efetua). Interessante a maneira como Deleuze chega a considerar (tal como um estóico) a existência de duas formas do tempo: Cronos e Áion. Cronos é o presente dos corpos; todo corpo está sempre no presente, é atual inexoravelmente. Áion é o tempo dos acontecimentos e das singularidades puras, o tempo do "que foi" e o do que "ainda será", tempo de devir, das mudanças, o tempo da diferença pura.78 A diferença é, sem dúvida, o simulacro. Platão tinha razão quando a condenou ao fundo mais recôndito do oceano. Tinha razão em condená-Ia, já que ela representava a própria negação do modelo, do fundamento. Era preciso que ela continuasse sendo fundo e jamais emergisse. Doce sonho o de Platão, querer paralisar o próprio ser. De fato, "o sistema do simulacro afirma a divergência e o descentramento; a única unidade, a única convergência de todas as séries é um caos informal que compreende todas elas".79 E, convenhamos, não é só para Platão que isso se revela assustador. O mundo em que o simulacro é liberado, o mundo em que ele se desprende sem deixar de ser totalmente esse fundo, ou seja, sem se deixar cair nas armadilhas da representação - esse é o mundo deleuziano. Cada um de nós é um simulacro, já que não há um fundamento como um "em si" que nos sirva de modelo. O modelo não existe mais. Logo, o antigo "jogo", o "mau jogo", onde um ser que é a Idéia exige do mundo caótico uma submissão irrestrita, não pode mais ser pensado. Existe um outro "jogo" - mais profundo e também mais puro e inocente - em que cada peça é única e insubstituível e onde só existe uma lei: a do seu próprio retorno.
163.
IV. Arte e pensamento nômades: a afirmação da diferença Ele faz valer um furor contra a medida, uma celebridade contra a gravidade, um secreto contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho. GILLES DELEUZE
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O Estado e a máquina de guerra Se tivéssemos de escolher, dentre os muitos textos de Deleuze, o que melhor exemplifica e sintetiza as suas idéias acerca do "nomadismo do pensamento" ou mesmo do "pensamento como máquina de guerra nômade", seria, sem dúvida nenhuma, o seu "Traité de nomadologie"1 - um importante capítulo do Mille plateaux (livro que escreveu com Guattari). Para começar, diríamos que a análise deleuziana 2 das complexas relações de poder entre os indo-europeus permite-nos compreender (não apenas por aproximação, mas por uma relação direta) o que ele mesmo designa por pensador nômade. Sobre o primeiro axioma do "Traité" que diz que "a máquina de guerra é exterior ao aparelho do Estado",3 poderíamos dizer que esta é uma afirmação bastante reveladora. Afinal, Deleuze está partindo do pressuposto de que pode haver algo que, estando integrado ao Estado, não lhe pertença por natureza. Em outras palavras, a máquina de guerra não é originariamente uma instituição estatal. Ela é bem mais uma espécie de "núcleo nômade" dentro do mundo sedentário (afirmação inusitada para aquele que aprende que nômades e sedentários são opostos e inimigos em essência). Mas por que falar em Estado ou em guerreiros quando nossa pesquisa volta-se, toda ela, para a compreensão do conceito de "diferença pura''? A resposta é muito simples: agora que sabemos o que é a diferença, precisamos compreender como e em que medida o autêntico pensador é um nômade e o próprio 166
pensamento, uma "máquina de guerra".4 Mais precisamente, temos que entender, com ainda maior profundidade, como a afirmação da diferença está estreitamente ligada a uma espécie de "nomadismo" do pensamento e como o próprio pensamento se contrapõe radicalmente à força "burocrática" da razão clássica - uma típica estrutura forjada por valores sedentários. Aliás, a própria idéia de um "Estado de direito" nasceu de uma espécie de simbiose entre a razão e as forças sedentárias. Afinal, só um pensamento comprometido com tais forças poderia produzir essa "ficção de um Estado universal de direito".5 Na realidade, mesmo antes de definirmos os conceitos de "pensador nômade" e "pensador sedentário",6 já havíamos tratado da necessidade que se fazia premente de libertar o pensamento das pressões morais e religiosas que tanto o impediam de exercer a sua mais nobre atividade: a da criação. Mais do que isso: já havíamos mostrado como a filosofia terminou tomando para si os próprios fins do Estado e da Moral, constituindo-se apenas como "ciência pura" - como um saber abstrato e sem qualquer relação com o fora, com o exterior.? Agora, portanto, resta-nos compreender em que medida é possível falar em "filósofos nômades" e "filósofos sedentários" e o que isso verdadeiramente representa para o pensamento. emos então à análise deleuziana do mundo indo-europeu.8 Como já mencionamos, só aparentemente existe integração entre as instituições estatais e a vida guerreira. O que já não se pode dizer dos dois elementos principais que compõem o aparelho de Estado ou, mais precisamente, os dois pólos da soberania política indo-européia: os reis-mágicos e os sacerdotesjuristas.9 Entre eles - a despeito do aparente antagonismo de seus discursos - existe mesmo uma relação de cumplicidade, e só uma análise muito superficial poderia nos dar a falsa idéia de que o poder político e o poder religioso não são complementares. Como afirma Deleuze, "eles funcionam em dupla, 167 em alternância, como se exprimissem uma divisão do Um ou compusessem eles próprios uma unidade soberana". 10 O Estado e a religião são, na realidade, o eixo do poder no mundo antigo. E segundo a análise de
Dumézil, a sociedade dos indo-europeus tem ainda, em sua configuração "tripartite", um terceiro elemento: o guerreiro. Mas como então é possível afirmar a exterioridade da máquina de guerra com relação ao aparelho de Estado e, ao mesmo tempo, fazer dela o terceiro vértice do poder estatal? Seria o segmento guerreiro responsável pela manutenção "física" do poder, isto é, o "braço" defensor desse Estado? Teria ele a função de garantir, como força militar, a sua legitimidade? Se isso é verdadeiro, como explicar que, sendo de natureza diversa, a máquina de guerra pudesse ter servido tão bem aos interesses do Estado? Na realidade, se hoje nos parece difícil dissociar a imagem do Estado da atividade militar, a verdade é que nem sempre essa interação foi tão clara. Basta que analisemos de perto as práticas e os costumes guerreiros dos indo-europeus, para percebermos que eles estavam longe de se deixar representar pelos mesmos códigos da sociedade civil e estatal. Segundo Deleuze, a "máquina de guerra" é, na sua essência, irredutível ao aparelho de Estado - ainda que o Estado tenha encontrado meios de "institucionalizá-Ia", de torná-Ia um instrumento e um veículo para assegurar a sua própria soberania. O Estado não tem por ele mesmo máquina de guerra; ele se apropriará dela somente sob a forma de instituição militar, e essa não cessará de lhe causar problemas. Daí a desconfiança dos Estados frente à sua instituição militar, enquanto ela é herdeira de uma máquina de guerra extrínseca.11 Ocorre que o Estado tem meios de captura e de dominação bastante poderosos e a "classe" guerreira acabou se tornando uma espécie de elemento híbrido no interior desse aparelho sedentário. Na verdade, só confundimos os interesses originários 168 de ambos porque, primeiramente, desconhecemos a história da apropriação da máquina de guerra pelo Estado e, em segundo lugar, porque não refletimos o suficiente sobre a natureza "subversiva" e mesmo "antiinstitucional" da vida guerreira. Soa estranho usar o termo "subversão" para falar dessa que é hoje uma das mais confiáveis instituições do Estado. Mas, na realidade, o que ocorre é que tendemos legitimamente a confundir a força guerreira do mundo mágico-despótico com a força militar dos Estados jurídicos: "O que complica tudo é que esta potência extrínseca da máquina de guerra tende, em algumas circunstâncias, a confundir-se com uma ou outra das cabeças do aparelho do Estado': 12 O problema é que toda vez que confundimos a máquina de guerra com os fins do Estado, deixamos de ver a sua exterioridade com relação a esse aparelho burocrático e sedentário. A vida do guerreiro é, em essência, uma vida nômade. Suas relações não se estabelecem da mesma forma que as de um homem comum; sua vida está longe de ter a segurança daqueles que exercem profissões sedentárias Mas quem são exatamente os nômades, para Deleuze? São grupos que vivem à parte das leis e das convenções do Estado? São bandos que vagueiam rotineiramente em busca de melhores condições de existência _ sem, no entanto, jamais tomarem para si territórios com fins de organização e de produção estáveis? Certamente, ninguém poderia negar que essas são algumas das definições possíveis para os nômades; não obstante, Deleuze pretende mostrar que também a máquina de guerra é essencialmente nômade _ o que significa dizer que sob um mesmo céu e num mesmo território têm convivido, há milênios, duas forças diametralmente contrárias. Repetimos que Deleuze não está chamando de nômades os militares modernos. Suas "intenções governamentais" e seu interesse em proteger a todo custo o "território nacional" já não nos deixam dúvidas a respeito da "sedentarização" dessa má169
quina. Os nômades de nossos dias são bem outros. Os nossos guerreiros já não pegam em armas para matar; eles têm uma atividade bem diferente. Mas, antes de falarmos deles, precisamos entender melhor os valores guerreiros - também exaltados por Nietzsche.13 Valores hoje defendidos não por soldados, mas por qualquer homem que não partilhe os ideais do Estado e da
Moral vigentes. Para Deleuze, portanto, o "nomadismo" não só é possível no interior do Estado como é absolutamente necessário para a sobrevivência de alguns indivíduos. Falemos então dos valores guerreiros: sob a ótica do Estado, afirma Deleuze, a originalidade e a excentricidade do homem de guerra foram sempre consideradas pontos negativos (a não ser, é claro, quando serviam aos seus interesses). Eles foram, muitas vezes, vistos como feras, loucos, usurpadores e pecadores.14 Mas enganam-se aqueles que pensam que os guerreiros antigos eram indivíduos absolutamente livres, sem códigos precisos. Ao contrário disso, como grupo de armas, as suas leis eram ainda mais severas e mesmo incompreensíveis para um sedentário. Desde os seus códigos de honra até a sua sede de eternidade, celebrada nos campos de batalha 15 - tudo isso está demasiadamente distante da vida pacata e regrada dos homens que vivem sob a proteção (e vigilância) do Estado. O guerreiro, na verdade, defende códigos muito particulares - resultantes de um olhar que desconhece as leis de uniformidade e de enquadramento do Estado soberano. A única ética que ele conhece é a dos "Iguais".16 Ele afirma sua singularidade contra todos os meios de apoderação e de captura do Estado. Esse é verdadeiramente o guerreiro nômade e é dele que queremos falar e não do militar devotado às causas do Estado. Deste último já sabemos bastante; resta-nos agora desvendar o espírito desse homem de guerra que afirma o devi r e aceita a morte como o coroamento de uma vida plena. Esse homem, com certeza, experimenta outras formas de relação com o mundo e com as coisas. Afinal, ele jamais poderia ter as mesmas rela170
ções que um sedentário, seja com as mulheres, com a família ou com os animais, "visto que ele vive todas as coisas em relações de devir"17 Nada é mais natural para um nômade - homem de espírito aventureiro, incansável nos seus objetivos e implacável quando o assunto é a defesa do seu próprio modo de vida - do que tomar o devir como o verdadeiro "destino" para a sua existência incerta. Afinal, o guerreiro não obedece (no sentido mais estrito do termo) a ninguém; ele desconhece as exigências do Estado e da moral sedentária. Sua moral não é a da comunidade, mas a do "bando". Suas regras são as de uma "minoria" que não se mistura mesmo que, na aparência, ela pareça fazer parte do aparelho de Estado. Para melhor exemplificar os dois tipos de existência - a do homem de Estado e a do guerreiro -, Deleuze faz alusão à teoria dos jogos (que, apesar de ser um exemplo um tanto limitado, pode ser bastante elucidativo do ponto de vista dos códigos e dos valores defendidos por esses dois mundos).18 É importante perceber, nos dois jogos em questão (o xadrez e o go), as relações que as peças mantêm entre si e como os dois jogos se desenvolvem no espaço. O xadrez é, por excelência, um jogo de Estado: suas peças são codificadas, possuindo uma natureza interior e qualidades intrínsecas. Cada um de seus movimentos depende diretamente dos códigos que elas representam o que reduz muito as suas possibilidades de movimento. Já o go é um jogo que tem como característica principal o fato de seus peões não possuírem qua~quer relação extrínseca necessária, não tendo também qualquer qualidade intrínseca que lhes impeça de se movimentarem livremente. Os seus movimentos, portanto, são dirigidos pela situação e não por códigos preestabelecidos. Segundo Deleuze, o go é pura estratégia, enquanto o xadrez é uma semiologia.19 Deleuze chama o espaço percorrido pelos peões do go de "espaço liso", por oposição ao "espaço estriado" do xadrez. O "espa171 ço liso" é o lugar dos fluxos, dos livres movimentos, da turbulência, do devir (não há nada de "préfigurado" nele). Já o "espaço estriado" é o lugar da ordem, dos movimentos "previsíveis".20 Ele é inteiramente recortado e dimensionado segundo códigos preestabelecidos. Mas também o xadrez é um jogo de guerra, afirma Deleuze, só que esta é uma "guerra institucionalizada, regulada, codificada".21 É uma guerra entre Estados e não entre guerreiros. Como diz Deleuze, trata-se de "uma outra jus tiça, um
outro movimento, um outro espaço-tempo".22 É também de uma outra justiça e de um outro espaço-tempo que tratam os nossoS nômades contemporâneos. E quem são eles, afinal? A filosofia e a arte estão entre os discursos nô mades ou também introjetaram os objetivos sedentários do Estado? Seriam elas criações autênticas desse mesmo Estado ou teriam sido aprisionadas por ele? Como fica a questão do pensamento, colocada nesses termos? Serviria a "representação" aos fins do Estado e o "pensamento" à máquina de guerra nômade? A isso, nós responderemos adiante.
o "nomadismo" e a afirmação da diferença Pelo que foi discutido no item anterior, a máquina de guerra foi absorvida pelo Estado. O autêntico guerreiro teria cedido lugar a um militar defensor das regras do poder estabelecido. Mas, se por um lado as forças sedentárias venceram, por outro, não se pode dizer que elas tenham aniquilado completamente as forças nômades. Tal como Nietzsche, Deleuze acredita no pluralismo das forças e se em um determinado momento uma força é soberana, isso não significa que ela seja a única. Mais do que isso: segundo Deleuze, é neste sentido que "a interpretação é uma arte tão difícil; devemos julgar se as forças que vencem são inferiores ou superiores, reativas ou ativas" 23. Em outras palavras, além de não serem únicas, as forças vencedoras quase nunca representam o que há de mais nobre e ativo. Mas o fundamental 172
aqui é entender que o que sobrevive e retoma são esses duelos de forças. Os indivíduos e as instituições são apenas veículos dessas forças. É por isso que podemos falar em nômades atuais. Eles são os "novos guerreiros" dessa batalha sem fim. 24 É no mesmo movimento que a máquina de guerra já está ultraada, condenada, apropriada, e
que ela toma novas formas, se metamorfoseia, afirmando sua irredutibilidade, sua exterioridade. 25 A metamorfose da máquina de guerra indica a própria plasticidade das forças nômades - uma característica extremamente desagradável para o mundo sedentário das identidades plenas. Sim! É chegado o tempo de falar nos nômades que nos interessam: os pensadores e os artistas. Mas que não pensem alguns que Deleuze defende incondicionalmente a filosofia e a arte como produtos das forças nômades. Nem todo pensador é nômade e muito menos é verdadeira a idéia de que todo artista é um "subversivo" em potencial. Muitas vezes, a arte e a filosofia serviram e servem ao aparelho de Estado. É bom frisar que estamos tomando os termos "pensador" e "artista" quase como sinônimos. 26 Afinal, a despeito das diferenças que existem entre eles, não podemos negar que Deleuze tende a identificá-Ios pelo fato de ambos devotarem a vida à "criação" (no sentido mais estrito do termo). Todo pensador ou artista nômade é necessariam ente um criador. Os que nada fizeram além de reproduzir e retratar as coisas são artistas sedentários - homens de confiança do Estado (ou, pelo menos, homens "confiáveis"). Como dissemos no capítulo I, um pensamento que não faz mal a ninguém, que não perturba ou entristece os tolos, não pode ser pensamento - pelo menos não no sentido em que Deleuze entende esse conceito. Diríamos que o pensador sedentário está para a recognição assim como o pensador nômade está para a diferença.27 Segundo o filósofo francês, o exemplo máximo do pensador nômade é Nietzsche.28 Nietzsche fez uma 173 espécie de "contrafilosofia", já que ele próprio considerava a filosofia uma antiga aliada do Estado e de seus fins "superiores". O que Pierre Klossowski, portanto, chamou de "o complô" contra a sua própria classe29 não ou, na obra de Nietzsche, de um movimento de afirmação do pensamento como potên cia criadora e como máquina de guerra - em detrimento do pensamento como puro ato recognitivo. Sobre Nietzsche, Deleuze diz o seguinte:
Eis talvez o mais profundo de Nietzsche, a medida de sua ruptura com a filosofia, tal como ela aparece no aforismo: ter feito do pensamento uma máquina de guerra, ter feito do pensamento uma
potência nômade.3D Ao que tudo indica, a filosofia não representa originariamente as forças nômades do pensamento. Ou, mais exatamente, para Deleuze, ela se constituiu desde a sua mais tenra idade (salvo raras exceções) como um discurso ligado à unidade do Estado. Para que possamos compreender tal afirmação, preci samos saber exatamente em que medida a filosofia representa as forças do mundo sedentário. Segundo Deleuze, toda tentativa de codificação é uma marca explícita do mundo estatal e, de um modo geral, são três os instrumentos de codificação utilizados por esse aparelho: a lei, o contrato e as instituições.3! "Sobre essas codificações florescem nossas burocracias';32 afirma Deleuze. E o discurso filosófico não foge à regra: ele também esteve sempre ligado aos instrumentos de codificação "que constituem o problema do Soberano, e que atravessam a história sedentária das formações despóticas às democracias".33 Críticas à filosofia e ao papel equivocado que ela teria assumido nos meios acadêmicos - uma "ciência pura", ensinada por professores diretamente ligados ao aparelho de Estado já haviam sido feitas por Schopenhauer.34 Para ele, tratava-se de estabelecer uma diferença entre professores públicos e livrespensadores. Os primeiros, comprometidos como estavam com 174 os fins do Estado e da cultura, não podiam jamais produzir algo que estivesse em desacordo com eles. Ao contrário dos livrespensadores, que podiam - vista sua posição de exterioridade - criar novas formas de vida e de sensibilidade. Aqui já não sabemos bem se estamos tratando de Schopenhauer, Nietzsche ou Deleuze; afinal, nesses três pensadores encontramos, em comum, um profundo sentimento de desprezo pelas convenções e por todas as "encenações" do poder estabelecido. Para sermos bem francos, a participação nesse "teatro" ordenado pelas forças sedentárias depende diretamente da crença que temos nele. Para um nômade, este é um mundo ao qual ele não se incorpora: suas leis, seus códigos, toda a parafernália de uma cultura que o nômade não reconhece como sua _ ou, pelo menos, não reconhece como algo perfeitamente natural e indiscutível. Como no capítulo I, chamamos esses homens de sujeitos de "má vontade': Neste sentido, os artistas e os pen sadores nômades são esses homens. A recognição e a representação, ainda que úteis do ponto de vista da sobrevivência do homem em sua cultura, são ultraadas em favor de um pensamento que ousa criar novos parâmetros e novas formas de existência. Daí por que um sedentário jamais pode entender o sentimento de "asco" que um nômade tem pelas chamadas lutas pelo poder e pelo prestígio - prêmios máximos do mundo sedentário (e motivo maior da prisão do pensamento). Há, na vida dos pensadores, segundo Nietzsche, ( ... ) tanta invenção, reflexão, audácia, desespero e esperanças como nas viagens dos grandes navegadores; e, para falar a verdade, são também viagens de exploração nos domínios mais recônditos e mais perigosos da vida.35 Mas, segundo Deleuze, os termos "livre-pensador" ou "pensador privado" não dão a exata idéia de quem é o nômade. Eles acabam por torná-Io uma espécie de homem solitário e isolado do mundo. Terminam criando a idéia do pensador introspecti175 vo e interiorizado, quando o próprio Nietzsche mencionou a necessidade de um "povo" que congregue esses homens. "Todo pensamento é já uma tribo, o contrário de um Estado" - afir ma Deleuze.36 Quanto aos pensadores, "em toda parte onde eles habitam, é a estepe ou o deserto ... Eles destroem as imagens".37 Por esta razão, Deleuze acredita que a compreensão e a afirmação do pensamento nietzschiano dependam do fato de estarmos no "mesmo barco" que ele: "Remar junto é partilhar alguma coisa fora de toda lei, de todo contrato, de toda instituição. Uma deriva, um movimento de deriva ou de desterritorialização".38
Como esperar então que um pensador, na acepção mais estrita do termo, possa colaborar com o Estado e com os fins da cultura vigente? Como pode ele contribuir para o bem-estar so cial, se o seu maior objetivo é subverter a ordem das coisas? Como esperar que um pensador possa lutar pelas mesmas coisas que a maioria, quando ele não acredita nos valores deste mundo sedentário? Pois bem, o que Deleuze chamou de pensadores sedentários Nietzsche chamou de operários da filosofia. E, no livro que dedica a Nietzsche, Deleuze afirma: "Suplico que se acabe, de vez, de confundir os operários da filosofia e, de uma maneira geral, os homens de ciência com os fllósofos".39 Como o próprio Nietzsche afirma, filósofos como Kant e Hegel têm de tornar pensáveis e compreensíveis toda uma enorme massa de juízos de valor, antigas fixações e criações de valores chamados de verdades (quer no campo da lógica, da política ou da moral).40 É como o próprio Deleuze afirma, em seu Nietzsche e a filosofia: alguns filósofos preocuparam-se apenas em inventariar os valores ou criticar as coisas em nome dos valores estabelecidos.4! Uma verdadeira crítica a esses valores jamais foi feita verdadeiramente antes de Nietzsche. Daí por que a filosofia não pode estar dissociada da questão dos valores; ela não pode existir como força criadora sem ao mesmo tempo produzir uma crítica profunda dos valores existentes. Do legítimo pensador, 176
exige-se que ele "crie valores':42 Mas, para tal tarefa, é preciso primeiro romper com os valores que nos constituíram. Na verdade, Deleuze apresenta Nietzsche como o primeiro a promover - de maneira drástica - uma decodificação no mundo sedentário: No nível daquilo que ele escreve e daquilo que ele pensa, Nietzsche prossegue uma tentativa de decodificação, não no sentido de uma decodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou por vir, mas de uma decodificação absoluta - fazer ar alguma coisa que não seja codificável, embaralhar todos os códigos.43 Não é sem motivo que a obra de Nietzsche produz tantos contra-sensos. São contra-sensos legítimos, afirma Deleuze. Afinal, "embaralhar os códigos" é uma tarefa muito difícil. Mais do que isso, embaralhar os códigos significa fazer cair os grandes mitos do mundo sedentário: desde a "identidade plena" das coisas até a imagem paternalista de um Estado protetor. Semelhança e igualdade são valores do mundo sedentário e também eles caem quando os códigos se misturam. O mundo nômade é um mundo de diferenças, é um mundo de devires, é um mundo de intensidades. "Não troque a intensidade por representações."44 Não troquem a escrita de intensidades pela escrita fria de uma razão representativa - que muito tem a dizer dos valores sedentários, mas muito pouco conhece do ar puro que respira um nômade. Conectar-se com o "fora': com o "exterior" - eis o que significa a expressão "o pensamento ao ar livre". Também Foucault, segundo Deleuze, tratou dessa espécie de nomadismo do pensamento com o termo que foi traduzido por "de-fora': Segundo Deleuze, o "de-fora" foucaultiano diz respeito às forças. Toda força remete necessariamente a uma outra força; as forças estão sempre em relação (tal como dissemos acima, a respeito das forças sedentárias e nômades). "Existe pois um devir 177 das forças que não se confunde com a história das formas, visto que opera numa outra dimensão."45 Em Foucault, tanto quanto em Nietzsche, "pensar não depende de uma bela interioridade que reuniria o visível e o enunciável, mas faz-se sob a intrusão de um de-fora que cava o intervalo e força, desmembra o interior".46 Também aqui podemos fazer alusão ao que foi abordado no primeiro capítulo: Foucault, tal como Nietzsche, rompeu com a razão clássica e com a imagem moral que ela forjou do pensamento, quando fez dele o exercício inato de uma faculdade que tende naturalmente para a verdade. O pensamento não tem nada de "natural"; ele não é um prosseguimento, uma decorrência de nossa atividade intelectual. "Pensar é não chegar ao não-estratificado."47 É romper com o "método", "o espaço estriado da cogita tio universalis':48 É conquistar a possibilidade de percorrer o espaço liso do ri1Undo nômade - espaço decodificado, sem prévias demarcações. Na verdade, o mais interessante sobre o nomadismo do pensamento é que ele não é uma "desrazão", ou seja, uma razão desvairada, ensandecida. Nietzsche, Foucault ou Deleuze jamais poderiam ser classificados como irracionalistas. Só um desconhecimento profundo de suas obras permite tal confusão. Para eles - sem qualquer distinção, neste caso - trata-se de fazer o pensamento funcionar sob novas bases, trata-se de introduzir o afeto e a paixão em seu cerne, trata-se de conectá-Io com o exterior. Mas o que é exatamente colocar o pensamento em relação com o "de-fora" ou simplesmente o "fora"? No caso de Nietzsche, por exemplo, a sua escrita não pode, de modo algum, ser entendida se não pudermos conectá-Ia a uma força externa, que lhe confere um sentido. Como diz Deleuze, o "aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriOl'es umas às outras".49 Se quisermos saber o que ele quer dizer, temos de descobrir a força que lhe dá um sentido ou, se for 178 preciso, dar-lhe um sentido novo.50 Isso é o que Deleuze chama de uma escrita de intensidades, uma escrita que de modo algum se confunde com o discurso representativo ou recognitivo.
Pôr o pensamento em relação imediata com o fora, com as forças do fora, em poucas palavras fazer do pensamento uma máquina de guerra, é um empreendimento estranho de que podemos estudar os procedimentos precisos na obra de Nietzsche. 51 Na verdade, o pensamento está em relação direta com o "fora" ou, mais precisamente, com a diferença. Somente ele pode realmente estabelecer a diferença, sem que isso signifique aprisioná-Ia e delimitá-Ia em um conceito vazio. É exatamente porque o pensamento rompe com a representação que ele pode apreendê-Ia em si mesma. Afinal, como vimos, o campo da diferença pura é o território virtual das singularidades - lugar do "não-lugar" dos elementos singulares e das forças que atravessam todas as coisas. Aliás, a diferença pura não pode ser representada exatamente por esta razão: não se pode representar o díspar. Somente os corpos, somente aquilo que pode ser apreendido por nossa sensibilidade pode ser objeto de uma representação. A diferença é a própria forma como o ser se expressa. Daí por que ela é objeto apenas do pensamento. É por uma espécie de intuição que o pensamento pode, enfim, dar conta da diferença. A razão, como vimos, nada pode fazer além
'"1 de
colocá-Ia sob o jugo da identidade e da semelhança - tamanha a sua dificuldade para compreender aquilo que é, em si mesmo, único e insubstituíve1. 52 Também a arte lida com as singularidades - pensa Deleuze. Razão pela qual ele dedica tanto espaço, em sua obra, às verdadeiras manifestações do espírito artístico. Trata-se, como já dissemos, da exaltação da arte como potência criadora máxima. Tal como o pensamento, a arte deve estar livre da recogni- .' ção e da representação para efetuar-se como autêntica ativi179 dade de uma alma nômade. A arte representatIva, a aespelLO ue sua beleza e de sua magnitude, paga tributos à identidade e à similitude perfeitas, jamais rompendo com um determinado estado de coisas. Neste sentido, a arte corre o perigo de se tornar um simples adorno ou uma mera peça decorativa. Uma arte nômade, ao contrário, causa uma espécie de mal-estar e uma desagradável sensação de ignorância àqueles que tentam decifrá-Ia segundo os códigos do mundo sedentário. É desta arte que Deleuze trata preferencialmente, quer ele esteja falando de literatura, pintura ou cinema. Já aos artistas sedentários, ele dedica o mesmo respeito que sempre dedicou aos chamados "operários da filosofia" concordando ou não com as suas prerrogativas. Mas quem são, portanto, esses artistas que rompem - tal como os pensadores nômades - com a percepção clássica e com a recognição? Para falarmos um pouco da literatura, diríamos que Deleuze é bastante criterioso quando examina aqueles que realmente poderiam ser chamados de "escritores". Para Deleuze, a escrita "é um processo, ou seja, uma agem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do -I' devir".53 Aquele que escreve está também numa relação direta com o "fora", com a turbulência que impede qualquer fixação de uma identidade plena. O escritor faz uma série de devires enquanto cria seus personagens. Um devir-animal, um devi rmulher e até mesmo um devirimperceptível - são os longos caminhos seguidos pelo escritor em seu próprio "espaço liso". Trata-se, no entanto, de se criar uma zona de vizinhança e não de adquirir caracteres formais. 54 Afinal, a escrita é sempre um ato inacabado. Fixar previamente os sentidos e as características de um personagem significa estar, sem dúvida nenhuma, paralisado no mundo da representação sedentária. De Kafka a Lawrence, do nouveau roman à literatura norteamericana, não são tantos os exemplos de escritores de espírito 180 nômade. No entanto, o mais importante a salientar é que eles estão longe de representar os interesses das forças sedentárias - que se inscrevem nos já mencionados instrumentos de codificação do Estado. Para Deleuze, escrever não é contar seus sonhos, suas viagens, seus amores e fantasmas; não é tratar de questões políticas ou sociais. Essa é a escrita do sedentário _ homem do "espaço estriado", homem das regras e da moral vigente. Essa é a literatura daqueles que estão perfeitamente enquadrados na idéia do "homem universal", do Estado de direito, da cogitatio universalis. Escreve-se
para todos, quer seja para diverti-Ias ou para conscientizá-los. Mas a escrita de um nômade dirige-se apenas aos que pertencem às tribos, às estepes e aos desertos. "É preciso estar no mesmo barco" para compreendê-Ia. E não é só isso, os temas abordados por um escritor das estepes talvez não interessem mesmo aos homens que defendem as práticas e a vida em comunidade. A crença no social é mes- c» mo um sonho sedentário que um nômade jamais poderia partilhar. Mas, como dissemos anteriormente, os nômades e os sedentários terminaram por ocupar o mesmo espaço geográfico - ainda que tenham vivido em planos bastante distintos. Por isso, muitas das ações e criações nômades tendem a ser interpretadas segundo o ponto de vista sedentário. Na literatura, por exemplo, tende-se sempre a buscar, por detrás dos personagens ou das idéias expostas, a figura do escritor em sua perfeita identidade. É a eterna busca do sujeito interiorizado, que defende idéias próprias e tem algo a dizer para o mundo. Mas, para Deleuze, um livro não é isso. Vejamos o que ele próprio diz sobre este assunto: Em um livro como em qualquer outra coisa, existem linhas de articulação ou de segmentaridade, estratos, territorialidades; mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e de desestratificação.55 181
Em suma, um livro pode muito bem trazer os traços do indivíduo que o escreve ou da cultura a que ele pertence, mas jamais pode ser reduzido a isso. E aqui Deleuze refere-se à es crita de um modo geral. Se ela estiver em contato com o exterior, com o "fora", ela será sempre uma escrita de intensidades e nunca uma escrita representativa - ou seja, uma escrita que -tem apenas a finalidade de retratar o mundo ou abordar questões cotidianas e vulgares. Seja de filosofia ou de poesia, um livro é uma pequena máquina que poderá estabelecer conexões com outras máquinas.56 Neste sentido, não há qualquer diferença entre um texto de filosofia e um livro de Borges. Não importa qual o objetivo central desses livros, mas a maneira pda qual eles se ligam com as forças que estão fora deles. Em outras palavras, o que importa é que eles também respirem novos ares e deixem de ser meros instrumentos de recognição e recodificação das forças sedentárias. Para Deleuze, a escrita é - na sua mais profunda essência - uma linha de fuga, uma possibilidade de transgressão dos limites impostos pelas leis da linguagem sedentária. É uma das formas encontradas pelo nômade para subverter e embaralhar os códigos do mundo fechado e estriado do Estado. À supremacia dos significados e dos significantes, Deleuze opôs uma lógica dos sentidos. Lewis Carroll é, para ele, o exemplo mais preciso dessa possibilidade no campo literário. Já tratamos do sentido no capítulo anterior, mas retomaremos a essa questão apenas para estabelecer melhor a diferença entre ele e o significado - já que os dois são normalmente empregados como sinônimos perfeitos. Para começar, Deleuze aponta os estóicos como os primeiros filósofos a tomarem o sentido como o elemento fundamental do pensamento. Mas existe uma grande diferença entre o que se convencionou chamar de significado (no campo da lingüística) e a idéia de sentido que encontramos na obra de Deleuze. De um modo mais objetivo, podemos dizer que o 182
significado é um objeto mental, um ser de razão - algo que não tem existência fora de nosso intelecto (os "universais" de Aristóteles, por exemplo). Já o sentido não é, para os estóicos ou mesmo para Deleuze, um objeto mental; o sentido é algo que está no mundo - ainda que não possua uma existência física, concreta. Somente o referente (para usarmos um termo de Saussure) é corpóreo. O sentido, como vimos no capítulo III, está entre os incorporais estóicos, ou seja, ele é um quase-existente (um ti). Daí por que ele não pode ser apreendido por nossa sensibilidade. O sentido é um acontecimento puro, uma relação (uma vez que pressupõe um encontro de corpos), e, por esta mesma razão, ele só pode ser objeto do nosso pensamento. A "estrela da manhã" e a "estrela da tarde" têm o mesmo referente, mas, como efeito
de suas relações com os outros corpos, elas se apresentam diferenciadas. Para sermos mais precisos, uma lógica dos sentidos pressupõe a idéia de um mundo de puras relações diferenciais. Isso quer dizer que um corpo não tem qualquer sentido em si, mas adquire um ou vários no instante mesmo em que se relaciona com os outros (ser aluno ou ser casado pressupõem sempre uma relação, um encontro de corpos). Os incorporais, portanto, são os verdadeiros objetos do pensamento e não os corpos; a diferença como um incorporal, em Deleuze, é possivelmente o primeiro e o único elemento a verdadeiramente descentrar o pensamento e tirá-Io de sua tarefa menor de mero reconhecedor do mundo e das coisas. Brincar com os sentidos, como faz Carroll, é brincar com as múltiplas relações a que estão fadados os seres. Não há nada de fixo ou de "fixável" nessas relações. Daí por que os sentidos são sempre mais flexíveis do que os significados. Para Deleuze, quando as significações são abaladas, ocorre, em cada um de nós, um imediato estranhamento. Tendemos a buscar referências adas ou significados fixos quando lemos um livro ou quando estamos diante de uma pintura qualquer. 183
É o que ocorre com a Alice de Lewis Carroll. Prestemos atenção nas palavras de Deleuze:
Se estas significações se abalam, ou não são estabelecidas em si mesmas, a identidade pessoal se perde - experiência dolorosa por que a Alice - em condições em que Deus, o mundo e o eu se tornam os personagens indecisos do sonho de um alguém indeterminado. Eis por que o último recurso parece ser o de identificar o sentido com a significação. 57 De fato, a significação malogra em Carroll e, para nós, parece irromper um mundo de ilusões e de absurdas relações. Na verdade, isso se dá porque perdemos a noção de que o pró prio significado das coisas que conhecemos é artificial. Isso não quer dizer, no entanto, que o mundo e as relações sejam absurdos. O fato de não haver um sentido intrínseco nas coisas não torna o mundo menos interessante ou dinâmico. Existe um sentido ou, mais exatamente, existem múltiplos sentidos. Fixar apenas um único sentido para as coisas é o maior de todos os desejos produzidos pela razão representativa e sedentária. É quando se funda o significado como objeto mental, como um ser de razão, como um universal abstrato. A literatura e a filosofia nômades, portanto, não falam de sujeitos ou de aglomerados sociais. Elas esquartejam o sujeito com suas qualidades intrínsecas e com sua perfeita interiori dade. O Sem-fundo encontrou a linguagem mística de seu furor, de sua informidade, de sua cegueira afirma Deleuze.58 O campo das singularidades impessoais emerge e arrasta consigo todos os significados "pré-fixados". O caos toma voz; o "fora" eclode e abala os alicerces do mundo sedentário - aparentemente tão seguro e bem protegido pelas ilusões de permanência criadas pela razão representativa. Mas não há nada de firme e de inquebrantável neste mundo. Só mesmo a razão sedentária poderia criar tais ilusões. O próprio Estado é uma ilu184
são, ainda que seja uma das mais tenazes. Esquecemos, por fim, que o homem é primeiramente um animal que vive em bandos. 59 Aliás, esquecemos também que o homem é um animal. De qualquer forma, o mais importante nisso tudo é poder mostrar como as forças nômades expressam um mundo totalmente diverso daquele que foi construído por uma razão soberana e "estatizante". Não nos cansamos de dizer que a razão é, ao mesmo tempo, o reflexo e a condição de emergência dos ideais do Estado. Só quando a razão rompe com os seus valores mais arraigados é que ela pode efetuar-se como potência criadora. Criar é, portanto, uma atividade nômade, já que o sedentário nada mais faz do que reconhecer e reproduzir. O próprio ato do conhecimento é, para um nômade, um ato de criação. Afinal, como um intérprete de signos, como um egiptólogo,60 o pensador (ou o artista) é, ao mesmo tempo, um decifrado r e um criador de novos sentidos. Daí por que, para Deleuze, a filosofia não é contemplação, reflexão ou comunicação. Como ele próprio diz, essas são "máquinas de
constituir Universais em todas as disciplinas".6! A filosofia é outra coisa: é a arte de criar conceitos. "Criar conceitos sempre novos, é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência."62 É interessante observar que Deleuze foi, por diversas vezes, acusado de não falar senão dele mesmo, quando tinha a intenção de falar de outros filósofos. Em outras palavras, Deleuze foi acusado de confundir e mesmo de produzir "ficções" acerca de outros pensadores. 63 Alguns até o acusaram de não ter produzido uma filosofia propriamente dita. É claro que, para um "prisioneiro" dos significantes e dos significados, Deleuze parece não ter produzido algo de muito original. Afinal, Deleuze não se preocupou tanto em criar neologismos, conceitos nunca vistos anteriormente. Sua ocupação foi sempre de uma outra
185 natureza; na verdade, a filosofia deleuziana é uma filosofia dos sentidos e do contínuo jogo de relações que eles estabelecem entre si. É por isso que criar conceitos, para Deleuze, não é criar uma palavra nova; é bem mais criar um novo sentido. E o "conceito", visto desta forma, não remete jamais a um campo de significados preestabelecidos. Ele remete, sobretudo, ao que Deleuze chama de plano de imanência ou plano de consistência _ que não pode ser confundido com um conceito qualquer, nem com o conceito de todos os conceitos. 64 O plano de imanência é o lugar, a mesa, a bandeja que compreende todos os conceitos criados por um filósofo. Vimos que, numa certa medida, ele é pré-filosófico. Afinal, "ele está pressuposto, não da maneira pela qual um conceito pode remeter a outros, mas pela qual os conceitos remetem e~es mesmos a uma compreensão não-conceitual".65 Vejamos de que maneira, portanto, podemos chegar a uma perfeita compreensão do que seja o processo de criação filosófica. Segundo Deleuze e Guattari, o plano de imanência ainda que faça parte de um mesmo movimento de criação do pensador - é anterior à invenção dos conceitos. Num sentido mais preciso, ele é a condição de emergência dos conceitos. Ele é o pano de fundo, é uma espécie de deserto que os conceitos vêm povoar. Os conceitos ligar-se-ão uns aos outros, segundo a fluidez desse "planômeno". Na verdade, o plano de imanência aponta para as condições internas do pensamento, para a possibilidade de sua própria organização. Em outras palavras, os elementos do plano são traços diagramáticos, enquanto os conceitos são traços intensivos. Os primeiros são movimentos do infinito, enquanto os segundos são as ordenadas intensivas desses movimentos.66 Mas já tratamos demasiadamente disso no capítulo III. Para Deleuze, o pensamento reivindica o movimento infinito ou o movimento do infinito.67 Ele não pressupõe qualquer 186
coordenada fixa. Daí por que a imagem moral do pensamento, ao estabelecer princípios inquestionáveis, impede o pensamento de se exercer como potência criadora. É claro que todo filósofo produz conceitos. Só que alguns deles (poderíamos citar Descartes ou Kant, só para começar) permanecem prisioneiros do que Deleuze chamou de "imagem ortodoxa do pensamento". E é neste sentido que eles não conseguiram produzir um pensamento capaz de "pensar" a diferença e de se associar definitivamente com o "fora". Em poucas palavras, o plano de imanência é uma espécie de corte, de crivo no caos. Sem isso, o pensamento se perderia no infinito que ele próprio deseja conquistar. 68 Esse plano de consistência impede que o pensamento se torne um puro devir enlouquecido - ou seja, que se transforme no mais puro devaneio. A única "loucura" ável para o pensamento é aquela do rompimento dos limites impostos - desde que isso também não signifique perder-se por completo nesse "espaço liso". Lembremos que os peões do go percorriam estrategicamente os espaços. Também os
pensadores criam seus próprios crivos - uma espécie de parada provisória, uma sondagem ageira de um pensamento que deve seguir sempre na direção do ilimitado, da diferença pura. Os conceitos seriam essas paradas, esses blocos fragmentados, e o plano de imanência, o espaço transcendental percorrido pelo pensamento, em sua busca permanente do infinito. O pensamento é, neste sentido, o maior de todos os riscos. Somente ele pode empreender a perigosa tarefa de romper com os limites e explorar o fundo caótico da matéria e do espírito. Ainda aqui, é o nome de Nietzsche que Deleuze cita. Nietzsche teria sido o primeiro a descobrir esse "abismo indiferenciado" das singularidades impessoais. Mas, como se isso não bastasse, Nietzsche ousou explorar esse fundo, com todos os riscos de ser tragado por essa profundidade que ele próprio interpre187 tava.69 E não pensem alguns que o pensamento e a loucura são correlatos na obra de Nietzsche; muito pelo contrário, eles jamais poderiam apresentar-se juntos. A loucura elimina a possibilidade de criação de um crivo, ela impede o funcionamento do pensamento como instância criadora de sentidos novos. Fazer vir à tona o fundo e fazer falar as mil vozes que o habitam sem se perder nesse movimento é a maior de todas as tarefas de um pensador das diferenças. A razão, em seu clássico funcionamento, jamais ousaria supor tal empreendimento. É por isso que a filosofia da diferença é afirmativa. Somente ela afirma os objetos e também os seus devires no tempo e no pen samento. "Em sua essência, a afirmação é ela própria diferença:'70 Não temos dúvida que Nietzsche é o primeiro filósofo da diferença, mas também não deixamos de ver que Deleuze é uma espécie de "herdeiro" da tese nietzschiana. Se a união de Dionisos e Ariana representa a dupla afirmação do devir e de um eterno retorno seletivo em Nietzsche,71 a união de Nietzsche e Deleuze representa a dupla afirmação de uma filosofia nômade. É impossível supor Deleuze sem Nietzsche, mas também é impossível supor o poder e o vigor da filosofia nietzschiana sem essa segunda afirmação. Nietzsche- Deleuze - separados pelo tempo, mas companheiros de pensamento. Decididamente, Deleuze criou uma filosofia original- que não se confunde em nada com a filosofia nietzschiana. Do que existe entre eles, já falamos anteriormente. Eles estão no mesmo barco, no mesmo movimento, no mesmo devir. Eles ousaram pensar e, por isso, há algo que os une irremediavelmente _ independentemente da distância espacial ou temporal. São os nômades do pensamento, os homens perigosos e assustadores que subvertem a ordem das coisas, fazendo emergir o fundo e fazendo emergir do fundo as singularidades impessoais que destronam a antiga crença nos sujeitos a priori. É a diferença pura, é o simulacro que emerge e destrói o antigo e mais perene sonho das identidades plenas. 188
Deleuze - O pensador nômade, o pensador das estepes, o pensador de "um povo que ainda está por vir". Sua análise das outras filosofias e mesmo da arte jamais é banal ou consensuaL O seu Proust ou o seu Bergson em muito pouco se parecem com aqueles decifrados por estudiosos sedentários - amantes dos códigos estabelecidos e dos significados. O pensamento de Deleuze percorre o infinito, ligando-se aqui e acolá com outros fluxos. E sem paralisá-Ios ou representá-Ios, Deleuze agencia-se com esses fluxos em seu próprio devir. Ele cria novas maquinações, novos agenciamentos, reativa outros conceitos e outros planos de imanência. É assim que ele constrói a sua própria máquina de guerra, ou seja, um pensamento singular, um pensamento do "fora", um pensamento nômade.
Conclusão 189
Chegar ao fim de uma pesquisa é, ao mesmo tempo, uma vitória e uma frustração. Uma vitória, porque nos dá a sensação de que conseguimos, ao menos, dizer o que queríamos. Uma frustração, porque sabemos que ainda há tanto por dizer. No fundo, desejaríamos poder dizer tudo sobre aquilo que nos afeta. Não falo aqui de um afeto banal, falo de algo profundo - um afeto que altera as nossas certezas, que nos desorienta (senão não seria um afeto), que nos lança em outros caminhos. Caminhos que não são nossos, caminhos que cruzam a nossa própria travessia, que abrem mil outras possibilidades e que nos fazem girar, descentrados sobre nós mesmos. Não é isso um afeto? Há, por acaso, algo mais "descentrador" do que esse sentimento que nos retira de nós mesmos e nos lança em outros devires? Por que não podemos, por exemplo, falar em paixão quando o assunto é o pensamento? Não é o pensamento, ele próprio, uma paixão que nos arrasta para o infinito? Mas poderíamos nos perguntar: seria conveniente falar em paixão, em afeto, quando se trata de um estudo que, a princípio, deve ser imparcial? Estarmos apaixonados por um tema que queremos vislumbrar com exatidão ofusca o nosso olhar e o nosso entendimento? Ou será que a nossa escolha é já resultado desse afeto? Talvez não haja razão para falar de algo que não nos diga respeito. Talvez seja preciso que alguma coisa nos toque profundamente para nos fazer falar e agir. Talvez seja preciso que um filósofo nos diga algo mais para nos fazer estabelecer uma ponte imaginária sobre o abismo que sempre separa dois seres. Como diz Deleuze, é preciso que alguma coisa 192
nos force a pensar; é preciso que uma força exterior coloque o nosso pequeno mundo em movimento. A paixão é, sem dúvida, essa força propulsora que nos impele à ação e à criação. Não se pode negar que todos os filósofos, sem exceção, são homens apaixonados pelo pensamento - mesmo quando as circunstâncias os obrigam a parecer frios e distantes. Nesse ponto, somos deleuzianos, mas também somos nietzschianos e foucaultianos, bergsonistas e platônicos; somos um pouco toda essa multiplicidade e, por fim, somos apenas nós mesmos _ únicos e insubstituíveis por "essência': Não foi por acaso, é claro, que nos dedicamos a Deleuze e a Nietzsche (por conseqüência) - já que existe um elo muito forte entre eles (um elo que ultraa a idéia, já bastante vulga rizada, de modelo e de cópia e se explica bem mais pelo caráter nômade de seus pensamentos). Dedicamo-nos a Deleuze porque, basicamente, partilhamos muitos de seus pontos de vista. Talvez isso tenha ajudado a amenizar as nossas angústias na hora de expor idéias tão complexas como as de diferença e repetição. Precisávamos estar, de um certo modo, no mesmo barco que Deleuze. Senão, como falar de conceitos que não são nossos, que não foram criados por nós? Sim, falamos deles e falamos muitas coisas. E se Deleuze tem razão em dizer que a nossa identidade é tragada pela diferença e que cada um de nós é apenas uma diferença entre outras, é possível que nossas definições comportem já um pequeno diferencial com relação às do próprio Deleuze. Mas, como dissemos na introdução, é preciso que a interpretação não desfigure o filósofo, não o torne esquálido e sem vida. E foi isso que procuramos fazer: mostrar Deleuze como um pensador nômade, um pensador que se arriscou na aventura suprema de pensar o devir e o tempo - sem, no entanto, se perder no próprio infinito que almejava conquistar. Vimos, entretanto, como é difícil dar conta do conceito de diferença pura, não apenas por ele ser um conceito problemático (ele não é nem mais nem menos problemático do que to193
dos os outros), mas porque, neste caso específico, é a própria estrutura do nosso conhecimento que nos impossibilita ter uma Idéia singular da diferença. Uma Idéia singular significa, em Deleuze, uma idéia que seja, ela própria, uma virtual idade múltipla, uma multiplicidade que se diz na e pela idéia. Dito de outra forma: uma Idéia que possa abranger todas as sinuosidades e aparições da diferença - sem reduzi-Ia à negação ou à contradição, sem reduzi-Ia a um simples predicado. A representação, como vimos, enfraquece a nossa compreensão da diferença; ela a distorce e a reduz a um simples atributo material. Mas a diferença não é o diverso. A diferença é o que faz com
que o diverso seja diverso. A diferença é intensiva, afirma Deleuze. Ela não pode ser apreendida pela representação porque ela não é da esfera do sensível. Ela é, antes, o ser do sensível. É preciso compreender Deleuze como um pensador da univocidade e da multiplicidade. Para
ele, o ser é unívoco. Mas a univocidade não significa um único e mesmo ser para todas as coisas. Muito pelo contrário, os seres são múltiplos e diversos. Univocidade significa que todos os seres se dizem de uma só maneira e num único sentido: eles se dizem na diferença e na repetição. A diferença é um acontecimento do próprio ser, é como ele se expressa, é como ele se diz. Cada ser é único. É por isso que tomar a diferença como atributo ou como negação é diminuí-Ia, reduzi-Ia a formas menores. É por isso também que a analogia só de um modo forçado dá conta dos seres. Só na representação a diferença aparece assim. A representação que sempre opera com um único centro, seja ela finita ou infinita. Somente o pensamento pode dar conta do caráter absoluta mente transgressor da diferença. Somente ele pode apreendê-Ia em sua forma pura, como intensidade, como o acontecimento dos seres. Dissemos que não foi por acaso que escolhemos Deleuze, e é verdade. Seu pensamento é altamente sedutor e perigoso. Como Nietzsche, ele ousou pensar o campo das singularidades 194
transcendentais (O que Nietzsche chamou de vontade de potência) - esse lugar do não-lugar que atravessa todas as coisas, essa virtual idade pura, esse campo de forças e de intensidades: esse mundo dionisíaco por excelência. Esse é o mundo que Deleuze desbravou, é o mundo que ele ajudou a liberar. Não há mais mundo sensível e mundo inteligível, mas um único mundo, um mundo de corpos e de intensidades, de corpos e de acontecimentos, de seres concretos e virtualidades. Para Deleuze, o nosso mundo é o mundo dos simulacros - uma vez que os modelos desapareceram. É um mundo sem órbita, descentrado - não por ser enlouquecido, desvairado, mas porque tem na diferença (e não na identidade) o seu princípio. É o fim do ponto de vista único, da supremacia da identidade, o fim da razão representativa. A disparidade e a multiplicidade dos seres são enfim afirmadas. É preciso tomar cada coisa como uma "obra autônoma": é o que ensinam os filósofos da diferença ou filósofos nômades. A identidade e a semelhança não am de simulações no grande "jogo" da existência, do ser e do devir. Enfim, os simulacros estão livres da tirania da razão representativa. Agora, cada ser pode pensar a si próprio como único e insubstituível, tal como uma obra de arte. Afinal, o que é a essência revelada na obra de arte (pergunta Deleuze), senão a própria diferença, a diferença última e absoluta? O ser como obra de arte, o ser como obra autônoma, o ser como diferença pura.
Notas Capítulo I 1 Deleuze, Crítica e clínica, p. 11. 2 É claro que uma distinção, ainda mais antiga, entre "pensamento" e "razão" (presente, de uma certa maneira, nas obras de Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Bergson) influenciou profundamente Deleuze - que abordou detalhadamente esta questão em Diferença e repetição. Trataremos adiante deste ponto e da distinção essencial entre "pensar" e "reconhecer". 3 No fundo da Natureza encontramos a diferença e não a semelhança e o idêntico. Só por um esforço de caráter lógico tomamos aquilo que é desigual por semelhante. "Nunca uma folha é inteiramente igual a outra", afirma Nietzsche (sobre este ponto, cf. Nietzsche, Verdade e mentira no sentido extramoral, em Os pensadores). 4 Ao longo deste capítulo faremos um confronto entre o que a razão clássica reconhece como "pensamento" e o que Deleuze defende como a "verdadeira máquina de guerra nômade" - o pensamento que ousa romper com os modelos estabelecidos e, sobretudo, ousa pensar a diferença. 5 No capítulo dedicado à diferença em si mesma em Diferença e repetição, Deleuze apresenta dois tipos de representação: a representação orgânica, finita, a que "estabelece" a diferença entre os seres sensíveis, e a representação orgiástica, aquela que encontra em si o infinito (a maior e a menor diferença). A representação orgiástica "descobre em si o tumulto, a inquietude e a paixão sob a calma aparente ou sob os limites do organizado. Ela reencontra o monstro" (ibid., p. 85). Mas, também ela é
impotente para apreender a diferença em si e tende, mais ainda do que a primeira, a reduzir o seu alcance e importância, designando por diferença pura todo o conjunto de variantes e variáveis, que coloca sob um mesmo "conceito" fixo e impermeável, como todo conceito representativo (ibid., p. 86). 6 Ibid., p. 415-416: "Se há, como foi tão bem mostrado por Foucault, um mundo clássico da representação, ele se define por estas quatro dimensões que o medem e o coordenam. São as quatro raízes do princípio da razão: a identidade do conceito, que se reflete numa ratio cognoseendi; a oposição do 'predicado, desenvolvid~ numa ratio fiendi; a analogia do juízo, distribuída numa ratio essendi; a semelhança da percepção, que determina uma ratio agendi. Toda e qualquer outra diferença que não se enraíze assim será desmesurada, incoordenada, inorgânica: grande demais ou pequena demais, não só para ser pensada, mas para ser". 7 Para maiores detalhes sobre as duas grandes ordens da generalidade, d. ibid., p. 21-27. 8 Permanecemos fiéis à distinção - corroborada por Deleuze - entre pensamento e razão. Mais exatamente, entre o ato libertador e criador do pensamento e o reconhecimento apaziguador da recognição. 9 No capítulo lI, trataremos da enorme dificuldade que a filosofia sempre encontrou para pensar e aceitar a existência da "diferença", quer seja na natureza, quer seja no pensamento. 10 Falaremos da filosofia platônica com mais detalhes no capítulo 11. 11 Apesar de atribuir-se a Kant o papel pioneiro na verdadeira crítica da razão e de seu funcionamento, sendo mesmo considerado o primeiro filósofo a romper com a representação clássica, Deleuze acredita que Kant não só jamais ultraou verdadeiramente o conhecimento representativo, como também o reforçou com a sua célebre teoria das faculdades. Segundo Deleuze, somente com Nietzsche uma nova imagem do pensamento teria sido realmente erigida, libertando definitivamente o pensamento dessa tarefa menor de conhecer e "reconhecer" as coisas. Sobre este ponto específico, d. Nietzsehe e a filosofia, III, 15. 12 NP, p. 89. 13 O termo "afeto" está sendo usado aqui e também em outras partes com um sentido espinosista, ou seja, como sinônimo de "paixão". Todo corpo, todo existente tem o poder de afetar e de ser afetado por outros corpos ou seres. Um afeto é uma "paixão da alma'; que tanto pode ser alegre (caso aumente a nossa potência de agir, o nosso conatus) quanto pode ser triste (caso diminua o nosso poder de ação). Sobre este ponto, cf. o item dedicado a Espinosa no capítulo 11. 14 Sobre a imagem moral do pensamento, d. Deleuze, Nietzsehe e a filosofia, p. 85-91, e Diferença e repetição, capo III. 15 Os dois primeiros itens estão no centro de toda a filosofia ocidental - que é, essencialmente, platônica e aristotélica; mas, nesse terceiro item, Deleuze reconhece a importância do cartesianismo na formação dessa imagem moral do pensamento. NOTAS 16 Sobre o problema dos postulados em filosofia, com a sua fórmula do "todo mundo sabe", cf. Deleuze, Diferença e repetição, p. 215-217. 17 Estamos usando o termo "ciência" não com o sentido que lhe é atribuído em nossos dias, mas tal como o entendia Aristóteles. 18 Deleuze, Diferença e repetição, p. 219. 19 Ibid., p. 215. 20 Ibid., p. 217. 21 Deleuze, Nietzsehe e a filosofia, p. 85-86. Deleuze retirou esse trecho de Nietzsche do livro Considérations inaetuelles III ("Schopenhauer éducateur", #3). 22 Sobre esse ponto, cf. o debate entre Foucault e Deleuze, "Os intelectuais e o poder", em Deleuze et aI., Capitalismo e esquizofrenia, p. 13-27 (o original foi publicado no nÚmero 49 da revista L'Are, em 1972). 23 Em Conversações, p. 125-126, Deleuze relaciona a idéia de "modos de existência" à de "estilos de vida" de Foucault, mostrando que a preocupação com uma "estética da existência" incluiu simultaneamente uma preocupação de ordem ética. A ética aqui (usada num sentido espinosista) de maneira alguma confunde-se com a "moral". A moral pressupõe o "bem" e o "mal" em si; a ética supõe relações de forças, o "bom" e o "mau" para alguém. Quanto à questão de o pensamento efetuar-se como uma verdadeira "máquina de guerra", d. o capítulo IV. 24 Deleuze, Nietzsehe, p. 18. 25 NP, p. 85.
26 Não há como não supor lamentável a maneira como a filosofia moralizou a existência, julgando e depreciando todos os seus movimentos em função de ideais petrificados e eternos. 27 O capítulo IV versará sobre o "nomadismo" do pensamento e da arte, cujo maior valor é o de afirmar a diferença em toda a sua potência desintegradora de velhos mundos e criadora de novas formas de existência. 28 O que é deplorável não é exatamente a confusão conceitual (tão comum) entre eles, mas o fato de o pensamento perder a sua principal atividade: a de criar novas possibilidades de existência. 29 Deleuze, Diferença e repetição, p. 223: "A imagem do pensamento é apenas a figura sob a qual universaliza-se a doxa, elevando-a ao nível racional. Mas, permanece-se prisioneiro da doxa quando apenas se faz abstração de seu conteÚdo empírico, mantendo-se o uso das faculdades que lhe correspondem e que retêm implicitamente o essencial do conteÚdo". 30 Nesse ponto exato encontramos a verdadeira distinção de natureza entre o que Deleuze chama de "filósofos sedentários" e "filósofos nômades", mas será preciso ainda dispor de mais elementos para que isso se esclareça. 31 Deleuze, Diferença e repetição, p. 223. 32 Estamos cientes de que ainda não definimos com precisão o que Deleuze chama de diferença pura (o que será feito de modo rigoroso no capítulo Ill). 33 Sobre esse ponto, d. Deleuze, Diferença e repetição, p. 224: "Pode-se distinguir, à maneira de Bergson, dois tipos de recognição, o da vaca em presença do capim e o do homem evocando suas lembranças, mas nem o segundo nem o primeiro pode ser um modelo para o que significa pensar'~ 34 Ibid. 35 Ibid., p. 225. 36 Alusão à idéia aristotélica, tratada em sua Metafísica, de que o homem tende naturalmente para o "conhecimento". 37 Deleuze, Proust e os signos, p. 15-16. 38 Ibid., p. 16. 39 Ibid., p. 4. 40 Deleuze, Diferença e repetição, p. 226. 41 Deleuze, Crítica e clínica, p. 155. 42 "Escapar do platonismo" não tem qu~uer conotação moral; diz respeito apenas à possível reversão de um tipo de orientação filosófica que, ao longo da história, excluiu o devir e a multiplicidade como objetos do pensamento. 43 O mais significativo diálogo de Platão sobre esse assunto é o Fédon. 44 Há, na obra de Nietzsche, um trecho que consideramos muito apropriado para expor a nossa idéia: "É notável que o intelecto seja responsável por esta situação, ele que não foi dado senão para servir precisamente de auxiliar aos seres mais desfavorecidos, mais vulneráveis e mais efêmeros, a fim de mantê-Ios com vida num espaço de um minuto" (Nietzsche, Verdade e mentira no sentido extramoral, tradução da autora). É neste sentido que estamos tomando a razão (ou intelecto): como uma estrutura reativa, comprometida demais com a sobrevivência mesquinha e pequena dos fracos. Já o pensamento é aquele que permite ao homem experimentar novas e arriscadas aventuras. Só o pensamento pode substituir os chifres e as mandíbulas mordazes que nos faltam. A compreensão da idéia de "generalidade" é absolutamente indispensável para entendermos o que significa "representar". Afinal, tendemos sempre a associar as imagens que temos das coisas pelo grau de semelhança e identidade que elas guardam entre si. 46 Deleuze, Diferença e repetição, p. 22. 47 lbid., p. 21. 48 Ibid., p. 24 (o grifo é nosso). 49 lbid., p. 26. 50 O enorme "nojo" que Zaratustra demonstra ter pela idéia de que tudo indiscriminadamente retoma ("O convalescente"), associado aos "silêncios" e "risos" que ele dá ao longo do texto, sugere que alguma coisa ainda não foi esclarecida. Para Deleuze, "retomar" é a própria essência do devir, só ele verdadeiramente retoma. Foi essa descoberta que fez Zaratustra recuperar a saúde. Voltaremos a este tema nos capítulos II e m.
51 Deleuze, Diferença e repetição, p. 468-469. 52 Ibid., p. 61. 53 "Contranatura", uma vez que violaria as leis que impedem os seres de retomarem como indivíduos. 54 Sobre essa definição, d. Deleuze, Lógica do sentido, p. 77-78. 55 No capítulo III retomaremos à questão deleuziana das singularidades como elementos pré-individuais e impessoais. 56 Uma outra repetição será possível e diz respeito à arte, mas ainda aqui trata-se de uma repetição daquilo que é absolutamente singular. 57 Deleuze, Lógica do sentido, p. 105. Deleuze não foi o primeiro a apresentar uma teoria racionalizada das "singularidades impessoais e préindividuais". Gilbert Simondon, antes dele, já havia se proposto fazer uma genealogia tanto do indivíduo vivo como do sujeito do conhecimento, a partir dessas singularidades. Sobre este ponto, cf. L'Individu et sa genese physicobiologique, p. 260-264. 58 A compreensão mais profunda dessa afirmação depende diretamente da elucidação do conceito de "diferença pura", o que será feito no capítulo III. 59 Deleuze, Lógica do sentido, p. 110. 60 Ibid. 61 Santo Tomás, Quaestiones Disputatae de Veritate, q. a 5. 62 Sobre esse ponto, cf. Leibniz, La Monadologie, p. 60-62. 63 Descartes, Meditações, lI!. 64 Antes mesmo de Nietzsche, Kant havia se proposto fazer uma verdadeira crítica do conhecimento racional. Não obstante, Kant jamais ulFALTAM NOTAS AQUI 19 Nietzsche, Considérations inactuelles llI, 1 (tradução da autora). 20 Parmênides jamais citou o nome de Heráclito (pelo menos não o encontramos nos fragmentos que restaram de sua obra), porém, não podemos deixar de ver no trecho a seguir - atribuído ao filósofo de Eléia - um certo insulto ao mobilismo excessivo de Heráclito: os "mortais que nada sabem erram, duplas cabeças, pois o imediato em seus peitos dirige errante pensamento; e são levados como surdos e cegos, perplexas, indecisas massas, para as quais ser e não-ser é reputado o mesmo e não o mesmo, e de tudo é reversível o caminho" (apud Simplício, Física, 117,2). 21 Poderíamos forçadamente chamar esse eterno jogo de contrários de "eterno jogo das diferenças". Isso não soará tão estranho quando posteriormente verificarmos que o próprio Aristóteles tomará o "contrário" como a diferença máxima. 22 Parmênides, fragmento 8 (tradução de Gerd Borheim). 23 Sobre o horror que inspira o devir, cf. Jean Wahl, Tratado de metafísica, p. 35-51. 24 Talvez como forma de salvaguardar o método dialético, Alexandre Kojeve - em um de seus grandes devires hegelianos defende a idéia de que entre o ser e o não-ser (o nada) existe uma diferença. Mas, se o ser compreende tudo, o que seria o não-ser em Parmênides? Sobre este tema, d. Kojeve, Introduction à ia iecture de Hegel, p. 491. 25 Embora muitos não considerem Nietzsche o maior dos especialistas na filosofia dos pré-socráticos, suas análises são de uma sutileza e de uma sagacidade inigualáveis. 26 Nietzsche, A filosofia na idade trágica dos gregos, p. 49. 27 Recorremos à interpretação nietzschiana porque, em muitos pontos, ela será retomada pelo próprio Deleuze. Uma afirmação dele em seu livro Nietzsche, p. 18, reflete essa conexão com Nietzsche: "A vida ativa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida. Já nem sequer temos idéia desta unidade pré-socrática': 28 O momento menos grego a que Nietzsche se refere é o momento da máxima abstração de Parmênides, em que, subtraído de toda a realidade, ele prega a existência de um ser imóvel e uno. Para Nietzsche, ele também "é um profeta da verdade, mas parece feito de gelo e não de fogo, e irradia a sua volta uma luz fria que queima". Cf. A filosofia na idade trágica dos gregos, p. 57. 29 Uma pergunta semprtse coloca quando falamos da teoria platônica dos dois mundos: Platão parte do mundo sensível para chegar ao inteligível ou apenas fecha os olhos para a existência fugaz e transitória da matéria, dirigindo-se diretamente para o mundo das formas? Se tomarmos o exemplo do belo, diríamos que Platão ite que o mundo físico funciona como uma espécie de lugar onde a remem oração se torna possível e, portanto, não pode ser totalmente desqualificado como ponte para o conhecimento verdadeiro.
30 Aristóteles, Metafísica, A 6: "Desde sua juventude, Platão, tendo-se tornado primeiramente amigo de Crátilo e familiar com as opiniões de Heráclito, segundo as quais todas as coisas sensíveis estão em um fluxo perpétuo e não podem ser objeto de ciência, permanecerá em seguida fiel a esta doutrina". 31 Falaremos adiante sobre a crítica de Aristóteles à teoria das idéias de Platão. 32 Sobre essa tese de Victor Brochard, d. em Études de philosophie antique et de philosophie moderne o capítulo sobre o devi r na filosofia de Platão. 33 Platão, Teeteto, 153-5. 34 Na verdade, comprometeria a própria existência das coisas em si, uma vez que num mundo de puro devir não há lugar para as identidades e substâncias. 35 Falaremos pormenorizadamente dos sofistas adiante. 36 Num certo sentido, apenas, Deleuze aproxima-se de Platão, mas a compreensão exata desse enunciado dependerá do nosso entendimento acerca do que é a "diferença pura" - o que só se esclarecerá definitivamente no capítulo 1lI. 37 Platão, Teeteto, 153d. 38 Ibid., 160c. 39 Referimo-nos à "teoria das idéias" de Platão, cuja importância não pode ser jamais negligenciada pelos estudiosos de filosofia, sejam eles platônicos ou não. 40 Sobre a motivação platônica, d. "Platão e o simulacro" em Deleuze, Lógica do sentido. 41 Ibid., p. 259. 42 Ibid., p. 263. 43 Ibid. 44 Qualquer dúvida a esse respeito, d. "Representação e recognição: a prisão do pensamento", p. 30 deste livro. 45 Deleuze, Lógica do sentido, p. 262. 46 Fazemos aqui referência ao Filebo de Platão, onde o devir louco nos é apresentado como um devir subversivo das profundidades. 47 Platão, Filebo, 25a-28c. 48 É claro que essa questão está longe de se esgotar entre os estudiosos de Aristóteles. Mas foi esta a orientação dos nominalistas medievais: afirmar que a substância segunda é um puro ser de razão, abstraído de uma coleção de indivíduos semelhantes. Isso porém não esclarece como esses seres participam dessa "essência". O que determina a semelhança entre os seres? Como o geral se individualiza? E de que maneira a forma resiste à degradação dos corpos, uma vez que ela se encontra "encarnada" neles? Estas são questões polêmicas, que exigiriam um profundo estudo da obra aristotélica - coisa que não está no âmbito do presente trabalho. Fica, porém, a questão lançada. 49 Aristóteles, Metafísica, Z, 15. 50 Ibid. 51 Ibid., M, 5. A afirmação de que as Idéias são paradigmas pode ser encontrada no Parmênides de Platão, 131a-132e. 52 A noção de diferença específica não pode ser desvinculada da teoria da substância aristotélica. 53 A "diairesis" é o nome dado ao método de divisão platônico - por meio do qual parte-se de uma forma genérica e chega-se até as suas especificidades. Expresso em termos da lógica aristotélica, o termo designa o progresso do gênero para as espécies. 54 Deleuze, Lógica do sentido, p. 260. 55 Platão, Parmênides, 129d-e. 56 Mesmo em seus primórdios, trata-se aqui de um primeiro esboço da noção de representação. 57 Platão, evidentemente, acredita na boa natureza do pensamento e por isso, quando defende a predicação, ele está longe da idéia de uma mistura absoluta que pode haver entre as idéias, defendida pelos sofistas. 58 Platão, Sofista, 241d. 59 A alteridade não implica, por sua vez, nenhuma determinação. Já a diferença implica dizer que uma coisa não é igual a outra na cor, na forma etc.
60 Aristóteles, Metafísica, Z, 15, 1039b, 27-29. 61 Falaremos sobre equivocidade e univocidade do ser no capítulo m. 62 Aristóteles, Metafísica, E, 2. 63 O termo ousía, que pode ser traduzido por substância e também por existência, foi por vezes empregado com o sentido de essência. O uso diverso fez dele um termo equívoco, ora significando substância e "existência" em Aristóteles, ora "essência" nos diálogos platônicos (mesmo porque, para Platão, somente as essências teriam uma existência plena). 64 Aristóteles, Categorias, 5. 65 Ibid. 66 Aristóteles, De Interpretatione, 13,23 a 24. 67 Léon Robin acha inconseqüente atribuir a Aristóteles uma doutrina da individuação pela matéria. Sobre esta afirmação, d. La Pensée hellénique, p. 490. 68 Cf. a afirmação de Gilson citada por Jean Wahl em Tratado de metafísica, p. 91. 69 Ibid. (tradução da autora). 70 Existem volumosos trabalhos acerca do problema do ser em Aristóteles. Porém, acreditamos que, a despeito das inúmeras controvérsias, o livro de Pierre Aubenque, Le Probleme de l'être chez Aristote, seja bastante conclusivo (até onde é possível sêIo). 71 Aristóteles, Metafísica, I, 4. 72 Ibid., D, 10, 1018. 73 Deleuze, Diferença e repetição, p. 67. 74 A lista das categorias, tal como é apresentada nos Tópicos, I, 9, é a seguinte: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, ter, agir e sofrer. 75 Aristóteles, Metafísica, I, 4 e I, 3, 1055. 76 Ibid., E, 2. 77 Santo Tomás, Suma teológica, m q 77, a 2 ad 10• 78 Deleuze, Diferença e repetição, p. 228-229. 79 O termo "representação" vem do latim (repraesentatio) e indica a imagem e/ou a idéia de alguma coisa. O uso do termo devese, sobretudo, à idéia de conhecimento como "semelhança" do objeto. Na verdade, o termo apareceu entre os escolásticos, ainda que possamos buscar na filosofia aristotélica as mais remotas bases para a construção desse conceito. 80 Aristóteles, Metafísica, D 9,1018,10-15. 81 Deleuze, Diferença e repetição, p. 98. Sobre o fato de a diferença ser projetada em um espaço plano, em razão de ser colocada à força numa identidade prévia, d. ibid., p. 127-134. 82 Platão, Sofista, 231 a. 83 Embora sejam reconhecidos dois movimentos da sofística (um que coincide com o seu aparecimento na Grécia pré-socrática e outro apenas articulado com as questões políticas), estamos nos referindo aqui aos primeiros sofistas gregos: Protágoras, Górgias, Hípias e Pródico. 84 Aliás, também esses estão inseridos em obras e te,;temunhos que visam a desqualificá-Ios. 85 Nietzsche, Oeuvres philosophiques complêtes, t. XIV, p. 83. 86 Não é sem motivo que, num segundo movimento da sofística, eles conheceram uma melhor sorte - uma vez que a questão da educação (a paidéia) tornou-se vital no mundo grego. 87 A idéia de produção, de criação dos sentidos só será retomada com vigor por Nietzsche. Vejam quantos séculos foram necessários para que se apagasse o desprezo por temas desta natureza. Se bem que este é um tema ainda hoje considerado bastante controverso.
88 Protágoras, fragmento Diels 80 (74), B l. 89 Platão, Teeteto, 161c. 4s. 90 Dupréel, Les Sophistes, p. 16. 91 Ibid. 92 Hegel, Leçons sur l'histoire de Ia philosophie, 1. rI, p. 262. 93 Barbara Cassin, Si Parménide, p. 452-454. 94 Nietzsche é profundamente gorgiano quando afirma que a linguagem é uma segunda metáfora e que acreditamos conhecer o ser das coisas quando apenas conhecemos a sua metáfora. Sobre este ponto, cf. Verdade e mentira no sentido extramoral. 95 Romeyer-Dherbey, Os sofistas, p. 40-4l. 96 O termo "Iogologia" é de Novalis e será retomado por Barbara Cassino Sobre este ponto, cf. Cassin, Ensaios sofísticos. 97 Ibid., p. 1l. 98 Ibid., p. 12. Vejam que os sofistas são realmente os primeiros a desconstruírem essa idéia de identidade do ser ou dos seres; eles deslocam profundamente a questão para o âmbito dos sentidos - que são necessariamente múltiplos. 99 Ibid., p. 5l. 100 Filóstrato, Vida dos sofistas, I, 480-484. 101 A segunda parte do capítulo III e o capítulo IV ilustram bem o que Deleuze chamou de "liberação dos simulacros". 102 Nietzsche, Oeuvres philosophiques complêtes, 1. XIV, p. 84. 103 Aubenque, "As filosofias helenísticas, estoicismo, epicurismo, ceticismo'; em História da filosofia (direção de François Chatelet), V. 1, p. 171. 104 Sobre a distinção entre significado e sentido, d. o item dedicado a Deleuze neste mesmo capítulo - lembrando apenas que Deleuze sempre preferiu o uso do termo "sentido" para designar o objeto da lógica estóica. Por esta razão, também usaremos este termo quando nos referirmos a ele. 105 Aubenque, ibid. 106 Ainda que não se possa falar de uma perfeita unidade do estoicismo (até porque encontramos manifestações distintas dessa filosofia, entre gregos e romanos), usaremos o termo estóico para designar um conjunto de idéias que, em essência, partilham de um fundo comum. 107 Deleuze, Lógica do sentido, p. 5. 108 Goldschmidt, Le Systême stolcien et l'idée de temps, p. 13 (tradução da autora). 109 Sobre esse tema especifico, d. ibid., p. 16. 110 Deleuze, Lógica do sentido, p. 5. 111 Ibid., p. 8-9. 112 Ibid., p. 9. 113 Ibid., p. 154. 114 lbid., p. 152. 115 Ibid. 116 Deleuze, Diferença e repetição, p. 37. 117 Esta nota tem como único objetivo alertar-nos de que, apesar da enorme influência do pensamento estóico na filosofia deleuziana, outros agenciamentos poderosos precisarão ser descortinados, para que haja uma ampla compreensão do seu conceito de diferença. 118 Estando os corpos no presente, nada poderá alterá-Ios, uma vez que o tempo não decorre para eles. Porém, os incorporais (entre eles, os sentidos) modificam-se constantemente, como efeito do encontro dos corpos. Somente eles podem alterar, em termos puramente superficiais, um corpo. São "os efeitos de superfície", tão profundamente tratados por Deleuze em Lógica do sentido. Reconhecemos, portanto, que, se a diferença pura existe, ela está no mesmo plano dos sentidos.
119 Não podemos deixar de ver, nas reflexões nominalistas, o embrião da lingüística moderna. 120 Sobre a "diferença" em Porfírio, d. Isagoge 9 elO. 121 Gilson, EI ser y Ias filosofas, p. 122-123 (tradução da autora). 122 Definitivamente, isso não será diferente em nenhum dos teólogos citados aqui. Deus é o "Ser Necessário" de Avicena, o "Ato Puro de Ser" de Santo Tomás e a Essência, com seus modos intrínsecos, em Scot. 123 Gilson, EI ser y los filosofos, p. 129 (tradução da autora). 124 Ibid., p. 125. 125 Em uma palestra proferida no Brasil- e publicada aqui com o título de A existência na filosofia de Santo Tomás -, Gilson mostra, com muita clareza, que a idéia de acidentalidade da exist~ncia, atribuída a Santo Tomás, não a de um grande equívoco de interpretação. Sobre este ponto, d. ibid., capo IV, ''A composição dos entes finitos". 126 Ibid., p. 63. 127 Scot, por vezes, usa o termo natureza como sinônimo de essência. 128 Gilson, ]ean Duns Scot, p. 86-87 (tradução da autora). 129 Duns Scot, Reportata Parisiensia, prólogo, q. 3 a. I (tradução da autora). 130 Gilson, EI ser y los filosofos, p. 137. 131 Sobre os momentos do unívoco na história da filosofia, cf. Deleuze, Diferença e repetição, p. 108-111. 132 Duns Sot, "Sobre a metafísica'; em Opus Oxoniense. 133 Ibid., I, d. 3, parte L 134 Ibid. 135 Falaremos da univocidade com maior profundidade no capítulo III. 136 Além de tratarmos, no capítulo III, da definição do conceito deleuziano de diferença pura, também tentaremos mostrar em que medida Deleuze é um pensador da imanência e da univocidade do ser (tanto quanto Espinosa). 137 Espinosa, Ética, I, proposição VIII. 138 Ibid., proposição XIV. 139 Sobre a prova da existência do Eu como coisa pensante, d. Descartes, Meditações metafísicas, 11. 140 Espinosa, Ética, I, definição VI. 141 Ibid., proposição VII. 142 Sobre o significado do termo "expressão" na obra de Espinosa, d. Deleuze, Spinoza et le problême de l'expression. 143 Espinosa, Ética, I, proposição XVII, corolário lI. 144 Para maiores informações sobre a importância que Santo Agostinho confere ao conhecimento, cf. Gilson, Introduction à l'étude de Saint Augustin, p. 31-88. 145 Segundo Espinosa, nós só podemos conceber como infinitas (e, portanto, reconhecer como atributos divinos) as qualidades que envolvem a nossa existência. Mesmo sabendo da existência dos demais atributos, nós não podemos ter deles nenhuma idéia. Cf. Deleuze, Espinosa e os signos, p. 72-74. 146 Espinosa, Ética, lI, proposição I. 147 Deleuze, Spinoza et le problême de l'expression, p. 10, e Espinosa, Ética, I, proposição 29, escólio. 148 Espinosa, Ética, I, proposição 29, escólio. 149 Ibid. 150 Não entraremos nessa questão polêmica ("como do infinito procede o finito"). Afinal, essa é uma questão complexa, que deve ser discutida mais amplamente em um outro trabalho. 151 Espinosa, Ética, lI, proposição VII. 152 Ibid., proposição XI. ~
153 Ibid. 154 Ontologicamente falando, não pode haver uma distinção de natureza entre a Substância (que é única e eterna) e as suas infinitas formas de expressão. 155 Se, por um lado, a hierarquia entre os seres será novamente restituída na obra espinosista, por outro, ela não terá mais um cunho moral. A hierarquia estará diretamente relacionada à potência e à complexidade dos existentes. 156 Sobre o problema da moral e da ética na filosofia de Espinosa, d. Deleuze, Espinosa e os signos, p. 31-36. 157 Ibid., p. 35. 158 O bom e o mau não são, portanto, instâncias morais, mas relações de força. 159 O que chamamos de crenças arraigadas são todas aquelas que atribuem ao homem uma natureza diversa daquela dos outros seres, bem como uma natureza diversa do próprio Deus, que não é mais o criador (ex nihilo) do mundo nem tem vontade livre para mudar o rumo das coisas. Deus é pura potência geradora de vida e nós somos apenas um de seus modos (talvez o mais potente, mas nem por isso o único a participar da sua natureza). 160 Bergson, La Pensée et le mouvant, p. 178: "Quando eu falo de um movimento absoluto, é porque eu atribuo ao móvel um interior e como que estados de alma, é também porque eu simpatizo com os estados e porque me insiro neles por um esforço de imaginação" (tradução da autora). 161 Ibid. 162 Em Bergson, a duração aparece, por vezes, como sinônimo de memória, essência ou espírito. 163 Bergson, La Pensée et le mouvant, p. 179. 164 Bergson, L'Évolution créatrice, p. 308-309. 165 Bergson, La Pensée et le mouvant, p. 166: "Quando escutamos uma melodia, nós temos a mais pura impressão de sucessão que podemos ter - uma impressão tão afastada quanto possível da de simultaneidade - e, no entanto, é a própria continuidade da melodia e a impossibilidade de decompô-Ia que causam em nós esta impressão" (tr..adução da autora). 166 É bem verdade que o próprio Bergson resistiu um pouco quanto ao uso do termo "intuição", talvez já prevendo futuras confusões a respeito desse conceito. Em Ia Pensée et le mouvant, p. 25, o próprio Bergson afirma que "a intuição é, aliás, uma palavra diante da qual nós hesitamos por muito tempo". 167 Deleuze, O bergsonismo, p. l. 168 Ibid., p. 3. 169 No item reservado à diferença em Deleuze, mostraremos que os agenciamentos que ele fez com os filósofos aqui apresentados (a despeito de suas diferenças essenciais) foram decisivos para a construção de sua filosofia. 170 Sobre esse ponto, recomendamos a leitura de Deleuze, O bergsonismo, capítulo ''A intuição como método". 171 Ibid., p. 3. 172 Ibid., p. 4. 173 Bergson, Ia Pensée et le mouvant, p. 30. 174 Ibid., p. 27. 175 Sobre esse ponto, cf. Deleuze, O bergsonismo, p. 13. 176 Bergson, Matiere et mémoire, p. 342, 331-332. 177 Bergson, Durée et simultanéité, p. 58-59. 178 Deleuze, O bergsonismo, p. 83. 179 Bergson, Ia Pensée et le mouvant, p. 166-167. 180 Bergson, I'Évolution créatrice, p. 1-3. 181 Deleuze, O bergsonismo, p. 39 182 Sobre esse ponto, cf. ibid., capo 11. 183 Nietzsche, Ia Volonté de puissance 11, IV, 242. 184 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 152. 185 Ibid., p. 226. 186 Nietzsche, Ia Volonté de puissance Il, IV, 242.
187 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 43-45 ("Das três metamorfoses"). De como o espírito se torna camelo, de como o camelo torna-se leão e, por fim, de como o leão se torna criança. 188 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 151. 189 Sobre o niilismo na obra nietzschiana, cf. Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 123-130. 190 Não é mais "a culpa é sua" e sim "a culpa é minha". 191 Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 125. 192 Nietzsche, Ia Volonté de puissance lI, 233. 193 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 225-226. 194 Nietzsche, Ia Volonté de puissance 11,614. 195 Sobre esse ponto, d. Nietzsche, Verdade e mentira no sentidi) extra-moral. 196 Nietzsche, Considérations inactuelles III. 197 Nietzsche, Os pensadores, p. 387. 198 "O mundo subsiste, não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nUllCa cessou de perecer _ conserva-se em ambos ... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento:' Cf. Os pensadores, p. 360. 199 Ibid., p. 23. 200 Nietzsche, O nascimento da tragédia, #16. 201 Ibid., # 7. 202 Ibid. 203 Nietzsche, Os pensadores, p. 27. 204 Ibid. 205 Ibid., p. 24. 206 Sobre a repetição em Deleuze, d. o capítulo III deste livro. 207 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 173. 208 Ibid., p. 25l. 209 Ibid. No nossO pensamento, é possível estabelecer pontes verdadeiras: são aquelas que se assentam sobre os afetos. 210 Para Deleuze, portanto, o eterno retorno pode ser compreendido de duas maneiras: como uma regra prática para a vontade e seu aspecto cosmológico. 211 Veremos melhor esse ponto no capítulo III. 212 Nietzsche, Os pensadores, p. 397. Capítulo 1\1
1 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 13. 2 Ibid., p. 27. 3 Ibid., p. 31. 4 Ibid., p. 29-30.
5 Deleuze, Diferença e repetição, p. 275. A leitura do capítula "Síntese ideal da diferença", em Diferença e repetição, é bastante esclarecedora, ainda que o texto trate desse ponto sob uma perspectiva um pouco diferente daquela abordada em Deleuze e Guattari, O que é a filosofia? 6 Achamos mais adequado, para o encaminhamento que demos à pesquisa, trabalhar mais diretamente com O que é a filosofia?, no que tange à definição de "conceito': 7 Ibid., p. 78. 8 Ibid. 9 Ibid., p. 16. 10 Daremos especial atenção ao que Deleuze chama de transcendental no segundo item deste capítulo. 11 Sobre esse ponto, cf. o capítulo I deste livro. 12 Deleuze, Diferença e repetição, p. 216. 13 Ibid., p. 215. 14 Deleuze, Conversações, p. 185-186. 15 Sobre os postulados implícitos e de como eles funcionam como obstáculos para uma filosofia da diferença e da repetição, recomendamos Deleuze, Diferença e repetição, p. 268-269. Tratamos disso também no capítulo I. 16 Tomamos esse exemplo do próprio Deleuze. Ele o aplica quando pretende expor a sua idéia de "diferença pura" em Diferença e repetição, p.643. 17 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 72. 18 Uma vez que eles não se ajustam uns aos outros, no sentido em que suas bordas não coincidem. Sobre esse ponto, cf. ibid., p. 51. 19 Sobre essa definição de conceito, cf. ibid., p. 33. 20 Sobre o conceito de acontecimento, cf. o item sobre os estóicos, no capítulo II deste livro. O ponto de vista apresentado está em consonância com a filosofia deleuziana. 21 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 33. 22 Dizer que o conceito não recobre algo de concreto não é o mesmo que dizer que ele não tem qualquer relação com o real ou com os corpos. Como um acontecimento ou como a expressão dele, o conceito remete tanto ao sentido de um acontecimento quanto à sua efetuação nos corpos. 23 A primeira definição está exposta, com mais precisão, em Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?; a segunda está plenamente desenvolvida no capítulo "Síntese ideal da diferença': em Deleuze, Diferença e repetição. 24 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 41-42. 25 Lembramos aqui a crítica que fizemos a Aristóteles, no capítulo lI, quando dissemos que a diferença como acidente é apenas uma atualização da diferença, que não deixa de continuar a subsistir em sua pura idealidade. Sobre o acontecimento e sua idealidade, cf. Deleuze, Lógica do sentido, p. 55-56. 26 Ibid., p. 26. O melhor exemplo que encontramos de dualidade dos acontecimentos está explícito no capítulo lI, no item referente aos estóicos. Trata-se da "morte" como acontecimento, na leitura de Blanchot. 27 Para a compreensão do sentido como algo irredutível tanto às coisas como às crenças e aos conceitos gerais, cf. ;)eleuze, Lógica do sentido, "Terceira série: da proposição". 28 Ibid., p. 56. Para Deleuze, a verdadeira reversão do platonismo es·.á em substituir a idealidade das essências pela idealidade do acontecimento (em suma, substituir o transcendente pelo transcendental, afirmando a absoluta imanência dos acontecimentos). Daí a dupla luta contra a confusão entre essência e acontecimento e entre o acontecimento e o acidente (confusão empirista). 29 Julgamos não ser necessário retomar às discussões do capítulo lI, onde procuramos estabelecer os principais componentes que fazem parte do conceito deleuziano. Cada um deles foi exaustivamente trabalhado enquanto conceito fundamental de outras filosofias. Havendo qualquer dúvida a respeito de um desses componentes, aconselhamos uma consulta ao capítulo II e aos filósofos que selecionamos entre os que consideramos imprescindíveis para a compreensão do universo deleuziano.
30 Deleuze, Diferença e repetição, p. 15 (o grifo é nosso). Esse ponto será melhor elucidado no decorrer deste item. 31 Sobre esse ponto, cf. ibid., p. 67-69. 32 Sobre esse ponto, cf. Wahl, Tratado de metafísica, p. 35. 33 Deleuze, Diferença e repetição, p. 65. 34 Ibid., p. 438. 35 Recomendamos, mais uma vez, a leitura minuciosa do item reservado a Aristóteles no capítulo 11. 36 Deleuze, Diferença e repetição, p. 69. 37 Ibid. 38 Ibid. 39 Ibid., p. 65. 40 Ibid., p. 106. 41 Ibid., p. 123. 42 Ibid., p. 417. 43 Ibid., p. 355. 44 Nesse ponto, acreditamos encontrar mais elementos em Lógica do sentido, onde Deleuze define os acontecimentos como incorporais, mostrando como a irrupção deles coincide com a irrupção da própria diferença empírica. Mas seria preciso fazer um nov.o trabalho que relacionasse acontecimento e diferença. 45 Queremos chamar atenção para o duplo uso que faremos do termo "acontecimento": como acontecimento do ser e como acontecimento no ser. "Acontecimento do ser" significa como ele se expressa, como ele "acontece': como se efetua; "acontecimento no ser" compreende as variações e modificações que advêm aos corpos enquanto eles se efetuam no espaço e no tempo. Veremos, porém, que o segundo decorre do primeiro, ou melhor, é a tendência do ser para a mudança que determina as variações sempre contínuas das coisas. 46 Deleuze, Diferença e repetição, p. 107-108. Deleuze faz aqui alusão ao ponto de vista nietzschiano, que ele próprio retoma em suas considerações acerca da repetição e do eterno retorno da diferença. 47 Aula de 14 de janeiro de 1974, d. a bibliografia. 48 Deleuze, Lógica do sentido, p. 185. 49 Deleuze, Diferença e repetição, p. 78. 50 Ibid., p. 75-76. 51 Ibid., p. 76. 52 Ibid., p. 437. 53 Ibid., p. 122. 54 Ibid., p. 121. 55 Eco, Obra aberta, capo I e IV. 56 Deleuze, Diferença e repetição, p. 83-85. 57 Ibid., p. 83. 58 Ibid., p. 84-85. A questão da relação entre a univocidade e o eternoretorno - ou, mais especificamente, de uma possível ontologia deleuziana - será tratada num próximo estudo. 59 Deleuze, ao longo de seu Diferença e repetição e mesmo na Lógica do sentido, faz diversas alusões a Leibniz e às suas concepções das essências individuais e da compossibilidade dos mundos. Deleuze as retoma, mas retira delas apenas o essencial: a idéia de haver um ponto de vista único e singular para cada mônada. Sobre essa afirmação que fizemos no texto, cf. Diferença e repetição, p. 438-439. 60 Deleuze, Lógica do sentido, p. 56. 61 Novalis estabelece a existência de duas ordens de acontecimentos, os acontecimentos ideais e os acontecimentos reais e imperfeitos (por exemplo, o protestantismo ideal e o luteranismo real). Sobre este ponto, d. ibid., p. 55-56. 62 Ainda não esgotamos esse assunto (até porque a definição de ser, em Deleuze, fará retomar essas questões adiante). 63 Deleuze, Diferença e repetição, p. 468. 64 Ibid., p. 470.
65 Ibid. 66 Ibid., p. 438. 67 Deleuze, Lógica do sentido, p. 105. Para Deleuze, tudo o que existe é composto por séries de singularidades e mesmo o pensamento deve ser entendido desta maneira. Deleuze inspira-se em Leibniz para pensar as séries divergentes e as compatibilidades e incompatibilidades dos acontecimentos. 68 Deleuze, Diferença e repetição, p. 439. 69 Ibid., p. 438-439. 70 Ibid. 71 Deleuze, Lógica do sentido, p. 113. 72 Ibid., p. 105. 73 Deleuze, Diferença e repetição, p. 151-152. 74 Deleuze, "L'Immanence: une vie", em Philosophie, n. 47, 1995, p. 3-7, p.4. 75 Deleuze, Lógica do sentido, p. 104-106. 76 Ibid., p. 1. 77 Sobre esse ponto específico, d. Deleuze, Diferença e repetição, p. 63-64. 78 Como dissemos em outra nota, tencionamos em trabalho futuro elucidar melhor a questão do tempo em Deleuze, associando-a aos acontecimentos e à diferença pura. Sobre a distinção entre Cronos e Áion, cf. "Vigésima terceira série: do Áion", em Lógica do sentido. 79 Deleuze, Diferença e repetição, p. 437. Capítulo IV 1. Deleuze e Guattari, "Traité de nomadologie: Ia machine de guerre", em Mille plateaux, p. 434-527. Esse capítulo trata, entre outras coisas, da relação entre os três elementos fundamentais do mundo indo-europeu (a saber: o rei, os sacerdotes e os guerreiros). 2 Análise, aliás, muito bem fundamentada nas obras de Géorges Dúmezil- sem dúvida alguma, o maior especialista na área. 3 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 434 (tradução da autora). 4 Pelo teor da nossa pesquisa, julgamos não ser preciso explicar que o que Deleuze entende por "autêntico pensador" nada tem em comum com a distinção moralista efetuada por PIa tão. De qualquer forma, ela não é menos severa. Sobre este ponto, d. o capítulo I. 5 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 465 (tradução da autora). 6 A definição destes dois conceitos foi dada no capítulo III. 7 Sobre a relação do pensamento com o fora, cf. Deleuze, "Pensée nomade'; em Nietzsche aujourd'hui?, 1. I, p. 165-169 (tradução da autora). 8 Chamamos atenção para o fato de que nossa análise tem um teor filosófico e está assentada em Mille plateaux, de Deleuze e Guattari. De qualquer maneira, citaremos sempre apenas o nome de Deleuze, já que a nossa pesquisa gira em torno da sua obra. 9 Sobre a mitologia dos indo-europeus, d. o conjunto da obra de Georges Dumézil. 10 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 435 (tradução da autora). 11 Ibid., p. 439 (tradução da autora). 12 Ibid., p. 438 (tradução da autora). 13 Sobre o que Nietzsche chama de "a moral guerreira'; d. Genealogia da moral. 14 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 437 (tradução da autora). 15 Fazemos referência aqui ao herói homérico - que buscava nos campos de batalha a glória imperecível da imortalidade. 16 Sobre a "isonomia" guerreira, d. Détienne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica, capítulo referente à laicização da palavra. 17 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 436 (tradução da autora).
18 Ibid., p. 437 (tradução da autora). 19 Ibid., p. 436-437 (tradução da autora). 20 Falamos em movimentos "previsíveis" não porque o jogador não possa jamais escolher para onde ir, mas porque as escolhas são muito limitadas, já que cada peça só pode se movimentar de uma maneira específica. 21 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 436 (tradução da autora). 22 Ibid., p. 437 (tradução da autora). 23 Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 48. 24 Como anti-hegeliano, Deleuze não acredita no fim das lutas e das diferenças. Ele crê no eterno retorno da diferença e na eterna luta pela supremacia da forças. 25 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 441 (tradução da autora). 26 Não encontramos, na obra de Deleuze, o conceito explícito de "artista nômade" (ao contrário do conceito de "pensador nômade", que está registrado no artigo já mencionado de Nietzsche aujourd'hui?). Não obstante, os problemas da arte são abordados por ele de uma maneira tal que em quase nada se diferenciam dos problemas enfrentados pelo pensamento e pelo pensador. Tomamos, portanto, a liberdade de usar este termo para dar a ele um sentido próximo ao de "pensador nômade". 27 Havendo dÚvida a respeito do que seja recognição ou representação, cf. o item referente a este tema no capítulo I. 28 Deleuze, "Pensée nomade", em Nietzsche aujourd'hui?, t. I (tradução da autora). 29 Nietzsche, por diversas vezes, negou ser um filósofo e preferiu usar o termo "primeiro psicólogo". E essa não é uma simples mudança de termos, é uma mudança do que significa pensar. Para Nietzsche, os filósofos estavam muito comprometidos com o Estado e nada faziam além de tornar a filosofia uma ciência abstrata e vazia. 30 Deleuze, "Pensée nomade", em Nietzsche aujourd'hui?, 1. I, p. 174 (tradução da autora). 31 Ibid., p. 164 (tradução da autora). 32 Ibid., p. 163 (tradução da autora). 33 Ibid., p. 173 (tradução da autora). 34 Sobre o que pensa Schopenhauer a respeito da filosofia universitária, d. Sobre a filosofia universitária. 35 Deleuze, Nietzsche, p. 48. 36 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 467 (tradução da autora). 37 Ibid (tradução da autora). 38 Deleuze, "Pensée nomade", em Nietzsche aujourd'hui?, 1. I, p. 165 (tradução da autora). 39 Deleuze, Nietzsche, p. 49. 40 Ibid., p. 50. 41 Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 2. 42 Deleuze, Nietzsche, p. 50. 43 Deleuze, "Pensée nomade", em Nietzsche aujourd'hui?, 1. I (tradução da autora). 44 lbid., p. 169 (tradução da autora). 45 Deleuze, Foucault, p. 118. 46 Ibid., p. 119. 47 Ibid., p. 118. 48 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 467 (tradução da autora).
49 Deleuze, "Pensée nomade': em Nietzsche aujourd'hui?, t. I, p. 167 (tradução da autora). 50 Ibid (tradução da autora). 51 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 467 (tradução da autora). 52 Havendo dúvida a respeito do que Deleuze define como diferença pura e como é possível o pensamento apre~ndê-Ia, cf. o capítulo Ir deste livro. 53 Deleuze, Crítica e clínica, p. 11. 54 Ibid. 55 Deleuze e Guattari, Mille plateaux, p. 9-10 (tradução da autora). 56 Ibid., p. 10 (tradução da autora). 57 Deleuze, Lógica do sentido, p. 19. 58 Ibid., p. 109-110. 59 Nem mesmo a razão pôde fazer valer, diante das evidências antropológicas e arqueológicas, a idéia de um Estado de direito atemporaI. 60 Sobre este tema cf. Deleuze, Proust e os signos, p. 4 61 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 15. 62 Ibid., p. 13. 63 Gros, "Le Foucault de Deleuze: une fiction nétaphysique': Philosophie, n. 47, p. 53. 64 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 51. 65 Ibid., p. 57. 66 Ibid., p. 56. 67 Ibid., p. 54. 68 O termo "conquistar': empregado por nós, não tem o sentido sedentário de "tomar posse" ou de "reorganizar um espaço desordenado". A conquista do caos ou da diferença diz respeito à possibilidade de o pensamento atingi-Ias sem que isso represente uma transfiguração ou uma modificação de sua natureza. 69 Deleuze, Lógica do sentido, p. 110-111. 70 Deleuze, Diferença e repetição, p. 101. 71 Sobre a união de Ariana e Dionisos na obra de Nietzsche, cf. Deleuze, Crítica e clínica, p. 126-134.
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